TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 7 de julho de 2008






UM PAPAGAIO DE FUTURO

Poesia. Atitude. Postura de artista grande, mesmo no início. Irreverência e originalidade na estética sonora. São esses os ingredientes que compõem um retrato de um cantor e compositor quando jovem. Tudo isso tem de sobra em “Vivo!”, terceiro disco de Alceu Valença, que projetou a sua carreira para todos os confins e o colocou definitivamente na galeria dos grandes nomes da música, sem sabotagens ou armações mercadológicas.

O ano era o de 1976 e existia um quadro de várias tendências no universo fonográfico no entremeio da década. As informações eram travadas, tanto pelo subdesenvolvimento das comunicações como pelo isolamento criminoso imposto pela tirania de Ernesto Geisel. Fora as inquietações, conformismos, exibicionismos e enlatados do quadro musical internacional, a situação era peculiar no Brasil: de um lado a música brega no auge, impulsionada pela opressão da censura; do outro a intriga entre a produção musical entreguista e ufanista contra a produção musical de resistência. Paralelo a isso existia um caminho alternativo por onde, entre outros, começavam a trilhar os novos nordestinos.

No início da década de 70 Alceu Valença já havia chamado a atenção com sua participação no filme “O Espantalho”, de Sérgio Ricardo, e pelas participações em alguns festivais, entre eles o “Abertura”. Apesar dos lançamentos de “Alceu Valença e Geraldo Azevedo” e “Molhado de Suor”, os dois primeiros registros em lp, o profeta das incoerências só apareceria de fato com “Vivo!”, gravado no teatro Tereza Rachel, durante a realização do show “Vou danado pra Catende”, lançado em vinil pela Som Livre, em edição de luxo, com capa dupla muito bem cuidada. Vendeu pouco, mas entrou para a história como uma verdadeira obra-prima.

Cocos, cirandas, emboladas, toadas, maracatus, aboios, cantorias e rock estruturam a parafernália provocadora de “Vivo!”. Tudo muito bem misturado e muito bem embalado numa estética sonora que definiria uma fusão repetida - por surrupiações, influências e falta de personalidade - milhares de vezes por diluidores espalhados por essa grande farsa que é o mercado fonográfico brasileiro. A irreverência, o sarcasmo, a ironia crítica e a poesia original, além de uma banda coesa e em grande momento, fizeram desse álbum uma verdadeira escola para muitos artistas. Aqui se aprende como se monta um repertório, como se veste, como se movimenta e como se toma conta de um palco.

A qualidade sonora não é lá essas coisas, mas deixa um enorme traço de honestidade. O disco abre com “O casamento da raposa com o rouxinol”, ponteada de início pela viola de dez cordas de Zé Ramalho, uma guitarra com leve distorção e fhase, e Alceu Valença anunciando o seu imaginário popular como um apresentador de circo. Baixo, bateria, percussão e flauta vão aparecendo aos poucos, fazendo uma cama enebriante, até chegar a um corpo sonoro, com riffs de guitarra e um vocal dramático. Abertura com personalidade, pra mostrar que o palco tem dono.

“Descida da ladeira” é um clássico da música alternativa. Parece um mantra, com trabalho competente de Paulo Lampião Rafael com o volume de guitarra. Essa ciranda modificada tem solos de flauta e muita ironia poética, em que Alceu Valença afirmando que “não acredita na força do vento que sopra e não uiva e que casca de banana é tobogã de fim-de-feira”, dá um recado todo especial aos oportunistas de plantão. Segue então “Edipiana n. 1”, música capaz de revolver o passado, o presente e o futuro. Essa é uma das mais inspiradas letras de Alceu Valença, emboladas, ironia e cinismo em forma de poesia. Ela começa lenta, criando um clima de aboio e busca uma carga dramática perfeitamente casada com o arranjo. Essa música tem um solo vocal histórico de Zé Ramalho e um vocal desesperado de Alceu no final. Imperdível.

“Você pensa” começa com uma violada de Zé Ramalho. É a mais rockeira do disco, com uma pegada forte de bateria e letra que reflete a vida dura do período. “Punhal de prata” é a junção de várias emboladas próprias e de cantadores tradicionais nordestinos. É o ponto máximo de interpretação de um show de um artista pronto para fazer história. É também um clássico. “Pontos cardeais” tem uma letra visceral, apontando para as necessidades urgentes: “Não quero essa boca / jorrando para dentro / palavras e gritos / e dentes e línguas...”. É também uma faixa climática, que vai num crescendo instigante.

Aparece então “Papagaio do futuro”, com apresentação peculiar e irônica de Alceu Valença. Essa não precisa comentar. Escute e tire as suas conclusões, como diz o autor. Imperdível. “Sol e chuva” encerra o disco de forma emblemática, voltando o show para onde começou, o imaginário popular imbricado com as coisas existenciais da modernidade. A viola também ganha destaque inicial, bem como a carga dramática do arranjo. Fenomenal. Esse é um dos discos que mereceriam o seu relançamento em vinil, não por saudosismo piegas, mas por questões históricas mesmo. Esse é um disco essencial.

A banda

Alceu Valença - voz, violão e violinha
Zé da Flauta - flauta transversal
Paulo Lampião Rafael - guitarra
Zé Ramalho da Paraíba - ukulelê, viola de 10 e 12 cordas, violão, vocais.
Israel Semente Proibida - bateria
Dicinho - baixo
Agricio Noya - percussão
Marcos Leonel
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