TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 18 de março de 2010

Chicote Queimado


Esta semana, em Fortaleza, a jovem empresária Marcela Montenegro foi morta numa tentativa de assalto. Uma família abalada autorizou a doação de órgãos terminando por beneficiar seis pacientes que, desesperadamente, aguardavam na fila de transplantes. Há que se louvar a força de familiares que, em meio a uma tragédia desse vulto, conseguem, mesmo assim, dar a volta por cima e transformar a dor e a revolta num ato de profunda solidariedade humana. Em meio à violência cotidiana, ficamos atônitos, na certeza de que é tênue a linha divisória entre o meu bem-estar e minha infelicidade . Eles dependem de meros fatos aleatórios e imprevisíveis. Parodiando Kipling , percebemos : quando se imola uma vida , de alguma maneira, se destrói o mundo. Postamo-nos todos, no meio da rua, buscando soluções para a guerrilha urbana que se vem instalando nos grandes centros populacionais. O mais das vezes, as propostas , emanadas no calor da paixão, trazem consigo um ranço vingativo que faria enrubescer o Código de Hamurabi. No caso da Marcela, há um perigoso agravante: a participação de um menor de 11 anos no assalto. Imediatamente nestes casos, salta em todos os noticiários a discussão interminável sobre a maioridade penal.
As justificativas para a diminuição da maioridade são amplas e repetitivas. Crianças com 15, 16 anos sabem perfeitamente o que estão fazendo, já podem inclusive votar e saem por aí dirigindo veículos. Por que , em caso de crimes cometidos, devem ser tratados como guris de berço, amparados e liberados rapidamente como se nada tivesse acontecido? Um tio da Marcela lembrou inclusive a condenação nos EUA à pena de morte, recentemente, de um menor homicida. Na Inglaterra, também, sabe-se de vários julgamentos à prisão perpétua para infratores juvenis. Por que só no Brasil isso não é permitido ? -- bradam os programas policiais. Cientes dessa aparente impunidade, bandidos aliciam menores para participarem de suas paradas e , em caso de morte de vítimas, colocam a culpa do homicídio neles , já que praticamente não respondem processo e , no máximo com dois anos, independentemente da gravidade do delito, estarão de volta às ruas. Reconheço que muitos desses argumentos são fortes e irrefutáveis e impossíveis de serem destruídos, máxime em momento de revolta e ânimos exaltados. Sei, também, que é bem mais fácil encontrar caminhos mais pacíficos quando o holocausto ainda não bateu à nossa porta.
Pois bem, vou meter minha passadeira nessa gamela. Vou desfiar algumas reflexões pessoais sobre o assunto. Sei perfeitamente que há menores violentos em todas as classes sociais, mas no Brasil ao menos, os infratores juvenis são quase sempre aqueles das classes mais desfavorecidas. São órfãos de escola, de saúde, de moradia, de cidadania e dignidade, de pais e de país. Criaram-se numa selva terrível onde tiveram que adquirir meneios de chacais para poder sobreviver. Talvez, por isso mesmo, tenham amadurecido tão rápido e já pareçam velhos e truculentos ainda na adolescência. Vêm armados para cobrar uma conta que sabem perfeitamente que a nação lhes deve. Como levá-los a julgamento , se a sociedade que os vai julgar não lhes concedeu as oportunidades necessárias para viverem condignamente? Como compará-los aos adolescentes dos países desenvolvidos a quem a maior parte das vezes foram fornecidos todos os ingredientes para um desenvolvimento humano saudável? E se fôssemos reduzir a maioridade penal, de que adiantaria? Em que idade a fixaríamos? Vejam que um dos assassinos da Marcelo tinha apenas 11 anos. Os bandidos imediatamente passariam a aliciar menores agora já na nova menoridade penal. Reduzir a maioridade penal é tão inócuo como vender a cama para evitar o adultério ou derrubar a casa para solucionar o problema da violência doméstica. E mais, se pena de morte resolvesse o problema, ele já estaria sanado, pois ela já existe extra-oficialmente. Todo dia o noticiário policial está prenhe de execuções de jovens por policiais, justiceiros e traficantes. E o pior é que essas mortes são veiculadas pela mídia com uma naturalidade impressionante, como se fosse uma coisa normal e previsível, quase pedagógica. No Brasil não há socialismo nem na morte. Até 2012 calcula-se que 34.000 jovens serão assassinados, nas 267 cidades brasileiras com mais de 100.000 habitantes, uma média de 13 adolescentes imolados a cada dia.
Soluções simplistas e milagrosas não existem e não surtirão efeito maior. A repressão apenas é inócua. Há que se revolver as raízes do problema que se encontra encravado nas nossas imensas desigualdades sociais. A resposta não está na razão da criança ter amadurecido já aos quinze anos sendo assim imputável, mas no porque lhe terem arrancado a infância a fórceps e forçado a se tornar um adulta antes do tempo. Ele procura na rua aquele menino que esconderam dele como a um chicote queimado . E a única ajuda que a sociedade parece lhe dar é gritar sem nenhuma convicção um tá-quente-tá-frio .


J. Flávio Vieira

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