Shyrléia fala de si aos céus quando está sob o céu. As locas dos índios para se proteger, hoje escritórios, residências...tantas a guardar a cabeça das pessoas sob telhados. Sufocantes. Ali está o mundo, ela não se sente no mundo quando está sob o céu, integrada à paisagem, nuvens e estrelas de fora do mundo, ela dois pés ao chão debaixo do céu e sob ele dentro, o céu no terraço a 360° de visão. O clarão das noites de lua cheia outro dia a incomodou, parecia que o céu pesava como um chapéu pesado, procurou uma parte do telhado para ficar debaixo. Foi curioso, resolveu pensar nisso depois, sim, depois, gostava de adiar os prazeres. E como amava estar sozinha, nem música, os barulhos dos carros e das motos entrando pela janela. Pensava de ouvidos fechados debaixo da sacada onde se escondera do céu, ali repetiu uma oração aprendida na infância: “Senhor eu não sou digna de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e...” A memória age por si em nós, e abre suas gavetinhas quando convém. No quintal com céu aberto, os olhos no cruzeiro do sul, as três Marias, o escorpião, esquadrinhava esse céu quase todos os dias, as suas aparições artísticas em ciclo contínuo, semana após semana, gostava de deitar no chão do quintal fazer alongamentos, falar de si. Ao menos hoje seu nome já não faz diferença ao ser apresentada, o apelido Léia (amenizante!) deixa baús sem abrir com a chave no bolso, some seu nome de travesti, Shyrléia leva a chave, só ela abre, quando quiser. Seu postergar de respostas assim semelhante ao esconder-se do peso do chapéu do céu, pensaria depois.
Sabe que não pode falar o que quer dizer. O Senhor, ela descobre e perde. E acha que não deve ser diferente disso para o resto das pessoas. Por isso não faz qualquer tentativa de mudar o destino bruscamente, não tenta abandonar os vícios, sente-se vencedora das culpas que assustadas fugiram pra perto dos que pesam seus pesos nas suas próprias costas. Impiedosa e indiferente com os que se sentem sofredores, Shyrléia pensa num senhor, dono que lhe cuida bem, juiz e conselheiro leal, figura imaginária sem divã nem trono, um pensamento paralelo que pensa com ela, exterior a ela, sem corpo. Brinca de dizer pro seu senhor – sorry, você não faz sexo comigo. E nem é muito bem humorada normalmente, nascera com um par de sobrancelhas taciturnas. Como quem sente que a vida, o mundo e a pessoa são uma única coisa independente do que há depois dos olhos. E tudo lhe parece fantasia. Como a teoria do quanta, tudo onda. Ouvira uma música de um cantor brasileiro, bem próxima matriz de uma afeição possível entre ciência e arte. Sempre quis ter um filho cientista. Para lhe explicar o segredo do universo.
E quando sozinha parece melhor do que entre as pessoas. Não deve falar o que não dizer. Calada, a sensação de estar sendo amordaçada por si, por um lenço de seda, roxo então, não dizer o que está pensando é sábio, dizer para o que se quer ouvir. O pensamento tem um closet cheinho de máscaras. Ouviu dizer que amigos bons fazem chorar. Acha que uma picardia, não fazendo chorar, é mais inteligente que uma verdade dura. E sem odiar, sentir-se agradecido depois. E que a amizade é somente provação, e nada mais. Acha que acontece igual com todas as pessoas, encontrar quem lhes diga exatamente o que ouvir. Ouvir durezas. Ouvir risadas. Os amigos alegres são os mais desejados. Nas paradas pra pensar sozinha – recomendação de Schopenhauer: exercitar o pensamento próprio – sozinha e povoada dos rostos e coisas das cenas recentes, pessoas fundamentalmente, observa que a realidade prática é mais o que mantém o motor rangendo pensamentos, que a sua quietude. Não é isso que a inquieta, ou também, e lamenta a subjetividade rica com a qual se conforma de passar apenas poucos minutos em sua companhia por dia. Gosta de pensar que pensar é o viver e bastaria. Shyrléia quer dedicar mais tempo a nenhuma companhia diante da natureza e sua mágica quando envelhecer. Pois não gosta de fazer sacrifícios nem pelo seu senhor, o orientador criado, pois que Deus é criação do homem e não o contrário, assim crê, um tanto das fábulas religiosas do mundo, um pouco de descobrir e perder o sábio íntimo que acha que mora nela, ou com ela, andando pela casa invisível na mesma freqüência das antenas de quem dissera ao velho pai ultra- conservador-cristão: - com deus ou sem deus se vive. E quase levou uma bofetada. Ela que trata como ser masculino o seu senhor, não sabe porque. Urbanóide, mora dentro da cidade, gosta da cidade, da sub-realidade. Encontrar momentos apenas olhando o movimento das nuvens já que as florestas estão distantes e o concreto domina o visual, saber-se tal onda de rádio oscilante buscando sintonia, imagina quem numa praia o mar diante, uma trilha numa mata, certa de que o tempo perdido foi para perder, não quer acompanhar a velocidade da televisão, um ímã rodando deixando tontos os atraídos. Sobe o telhado. Senta na sala meio na defensiva para não entrar na roda que pisca viciando os olhos. Não assiste, espreita. Fica ali numa freqüência limítrofe, e às vezes tão impessoal, que ao ver apenas a produção em si, a cenografia, o áudio, antecipa-se e deixa o resto por ver, nunca mais vendo.
(capítulo de um ensaio literário que ando escrevendo...beijos em todos e todas)
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