TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sábado, 1 de janeiro de 2011

As três irmãs criadoras do mundo

Ronaldo Correia de Brito
Do Recife (PE)

Havia três misteriosas senhoras no Crato, a linda cidadezinha que só existiu em minha infância e se transformou num feio aglomerado urbano. Os rios Granjeiro e Batateiras deixaram de ser rios e viraram canais, latrinas mal cheirosas onde despejam esgotos e lixo. E a floresta da serra do Araripe, tão longe e misteriosa, queima a cada ano. As onças, os veados, os tatus e as antas, seus antigos moradores, são animais que as crianças conhecem apenas nos desenhos dos livros.
Mas eu falava de três mulheres que sempre imaginei serem fadas, daquelas com varinha de condão, criando e transformando o mundo em volta delas. As três fadas possuíam nomes sem nenhum encanto. Todos na cidade se referiam a elas como as irmãs do alfaiate Zé de Rita. Simplesmente assim. O alfaiate não costurava bem, tinha o juízo alvoroçado e botava as roupas a perder. As pessoas deixavam os panos, ele tomava as medidas e na data de entregar as encomendas nunca estavam prontas e sempre ficavam frouxas ou apertadas.
Apesar da má fama do costureiro, eu teimava em fazer minhas roupas com ele, pelo encantamento de entrar na casa antiga de terraço e jardim laterais, no estilo árabe das mil e uma noites. Até as fruteiras evocavam o oriente de Sherazade: romãzeiras, laranjeiras e figueiras. As costuras eram pretexto para poder conversar com as três irmãs do alfaiate, perguntar como iam os trabalhos da lapinha, o presépio mais encantador e criativo de todos os que montavam no Crato. Elas se ocupavam o ano inteirinho criando anjos, pastores, pastoras, ciganas, borboletas, beija-flores, céus estrelados, desertos com oasis e camelos, lagos cheios de patinhos, cisnes e gansos, casinhas com terreiros de galos, galinhas, guinés, perus e pintinhos, cidade medieval que lembrava uma suposta Jerusalém, rios, pontes, igrejas, torres, florestas, moinhos e, em meio a todo esse esplendor, no lugar de maior destaque, o Menino Jesus deitado na manjedoura, ladeado pelo pai e pela mãe.
Eu suspirava todas as vezes que passava em frente à casa, ansioso para que chegasse o primeiro dia de dezembro, quando as portas se abririam e o mistério se revelaria aos meus olhos de criança. As três irmãs fadas sentavam em cadeiras e recebiam as pessoas, felizes em poder representar o milagre do nascimento de Cristo.
Curioso e inquieto, planejava minhas visitas diárias, querendo usufruir ao máximo o teatro imóvel, que se oferecia apenas até a festa de Reis. Num dia, me detinha nos lagos e pontes. Noutro, queria ver apenas os anjos, arcanjos, querubins e serafins, a corte celeste em adoração ao Menino Deus, arrumada contra um céu azul de pano, bordado com lua, estrelas, sol e cometa. Nunca vi cenário mais bonito em toda vida.
Com as três irmãs fadas aprendi o sentido da palavra dádiva. Durante onze meses elas se entregavam à construção da lapinha, que podia encher uma sala inteira. Nunca soube se ganhavam algum dinheiro com isso. Com certeza, não. O único pagamento era o brilho dos olhos das pessoas, o encantamento, os gritos de alegria. Bastava para compensar as noites sem dormir, os ferimentos nos dedos, as dores nas costas. As três irmãs do alfaiate Zé de Rita eram dadivosas como o próprio Cristo, me ensinava mamãe.
Nunca pagarei o que essas três mulheres fizeram por mim. Todo Natal imagino-as montando um grande presépio lá no céu, com anjos de verdade e o próprio cristo transformado em Menino, deitado nas palhas da manjedoura. Deve ser assim mesmo. E o compositor Bach, certamente prepara uma linda cantata natalina, que os anjos entoam com suas vozes de anjo. As três irmãs sentam em cadeiras sobre as nuvens, olham a criação de suas vidas e sentem-se divinas.

Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens e Galiléia.

2 comentários:

Rosemary Borges Xavier disse...

O doutor Ronaldo Correia de Brito, também é autor do Auto do Natal: O Baile do Menino Deus-encenado no Marco Zero-Recife-PE. Belíssimo espetáculo.

Rosemary Borges Xavier

Zé NIlton disse...

Muito bem, Rosemary, o Dr. Ronaldo Correia de Brito, premiado e excelente escritor, deixa uma imagem de nossa Crato que não corresponde a realidade vista não pelos políticos do momento, mas pelo povo.
A nossa cidade não é feia, feio são os ditos "tomadores de conta" da cidade.A nossa cidade é belíssima. Cheia de verde. Clima ameno. O povo se delicia em suas fontes perenes com tudo o que tem direito.Por aqui há cultura em cada esquina. Quando os "intelectuais" querem dizer do Ceará ou de suas infâncias, citam o Crato, um torrão adorado.
Não é desta forma que se eleva a nossa urbe. Que não goste da administração, tudo bem, que não concorde com os feitos ou desfeitos de seus pequenos administradores, eu concordo. Mas passar a imagem limitada de uma Crato caquética, feia e desprezível, alto lá seu Ronaldo. Foi aqui onde o Sr. aprendeu a ser escritor. Devia ter mais respeito não com as partes ou com os cratos que muitos têm na cabeça, mas com o todo, com a história invicta dessa gente que aqui nasceu, cresceu, amou e vive a sua terra.
Mas, fora disto, admiro demais sua produção cultural baseada na vivência acre doce do Nordeste. É tanto que, dia 6, Dia de Reis, no meu programa Compositores do Brasil, na Rádio Educaddora do Cariri, vou mostrar a sua arte no Baile do Menino Deus, que considero um obra prima dos autos de natal no Brasil.
P.S. O aglomerado urbano, Dr. Ronaldo, é a coisa mais bonita que temos. A integração das três cidades criou novos espaços, novas sociabilidades e uma infindável oportunidade para a garantia de emprego e renda para a população, que não precisa mais arribar para o sudeste.
Por aqui tudo é lindo. Quando você vier visitar a cidadezinha que ficou na sua memória, procure os amigos para eles lhe mostrar as belezas do Crato, ok ?