No último dia 17 de Maio, a Academia Cearense de Medicina resolveu homenagear um dos luminares da
Medicina no Ceará : o Dr. Napoleão Tavares Neves. A justíssima homenagem o fez adentrar nas hostes daquela instituição
como Membro Honorário e deixou todo o Cariri de dentes à mostra. As Academias têm uma enorme importância em
elevar ao pedestal figuras de grande
merecimento e que tantas vezes passam quase que desapercebidas na Sociedade.
Como organizações humanas , no entanto, têm política própria e tantas e tantas
vezes deixam-se influenciar por pressões de grupos e terminam por cometer
injustiças e desvios impensáveis. No caso do Dr. Napoleão, possivelmente, houve
apenas um pequeno erro de timing: ele já merecia o Título há muitos e muitos
anos. Talvez o fato de ter se estabelecido no interior do Estado tenha
contribuído para o esquecimento. Todos os que clinicam longe do litoral fazem
parte daquilo que se pode chamar Face Oculta da Medicina Brasileira. Perdura um certo preconceito embutido : aquele
mesmo que alimenta o primeiro mundo contra o terceiro, o Sul contra o Nordeste,
a Capital contra o Interior. A simples lembrança da Academia para com o nosso
Dr. Napoleão já quantifica a importância dele, capaz de dirimir fronteiras até então intransponíveis.
São
81 anos de vida e mais de 50 dedicados à
Medicina. Nascido no Jardim, criado em Porteiras, radicado em Barbalha, Dr.
Napoleão nunca se imiscuiu em briguinhas bairristas: como um Confederado sempre
compreendeu a unicidade do Estado do Cariri. Percebe claramente que nossas diferenças são mínimas e necessárias e que
existem imensas similiaridades a nos unir. Sempre teve uma visão bastante
sociológica nas questões que envolvem o
Juazeiro do Padre Cícero e também a saga do Cangaço. Todas estas matérias podem parecer distantes
da Medicina, mas não para o Dr. Napoleão que faz parte da última geração de
esculápios para quem a profissão médica
estava umbilicalmente ligada ao Humanismo. A Sociologia , a História, a
Filosofia, a Geografia para ele são tão
importantes para sua atividade como um livro de Anatomia de Testut. Hoje,
diante de tanto aparato tecnológico, os novos profissionais esquecem a
complexidade da vida que lhe é posta às mãos. Receitam, prescrevem como se
estivessem consertando um Rádio ou uma TV. Não conseguem perceber que além do enfarte, para lá da úlcera, existe um espírito atormentado suplicando
ajuda. Dr. Napoleão, ainda em plena atividade, seguiu sempre o grande preceito
Jungiano: “ Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma
alma humana, seja apenas outra alma humana.”
Nosso
médico segue uma genealogia profundamente humanística : Dr. Leão Sampaio, Dr.
Pio Sampaio, Dr. Lírio Callou, Dr. Joaquim Fernandes Teles, Dr. Joaquim
Pinheiro Filho. Para todos eles, o
atendimento era pronto , rápido, independentemente das condições econômicas do
paciente. E são muitas as histórias que
envolvem sua vida profissional. Há alguns anos Dr. Napoleão assumiu uma equipe
de PSF em Barbalha. Um sobrinho seu, médico, exercia a função de Secretário de
Saúde na cidade e foi ele quem me relatou o acontecido. A relação do Dr.
Napoleão com ele era de Tio para sobrinho : uma cobrança pertinaz pelos direitos da
população. Falta de medicamentos, exigüidade de exames complementares era uma
coisa inconcebível. Um dia , me contou o sobrinho, ele lhe ligou exigindo que
mandasse urgente uma Cesta Básica para uma família da sua área que estava
sofrendo de uma doença terrível chamada fome.A Cesta era um remédio
imprescindível para curar a grave doença. De outra feita, passando pelos
corredores da emergência do Hospital São Vicente, ouviu um jovem médico
receitando um pobre matuto. A queixa principal era que tinha sido mordido pro
uma lagartixa. O jovem esculápio, sorrindo, liberou o paciente: podia ir para
casa, não tinha problema nenhum: lagartixa não é venenosa. Dr. Napoleão voltou,
chamou o colega e alertou-o. Podia proceder
a aplicação do Soro Anti-Ofídico. Para Lagartixa, Dr. Napoleão ? -- Perguntou
o colega confuso. Dr. Napoleão, então, explicou o que a Ressonância Magnética e
a Tomografia Computadorizada não diagnosticam : -- Meu filho, o matuto tem a
crença de que se disser que foi mordido por cobra, não escapa da mordedura, por
isso nunca revela que foi por jararaca
ou cascavel, diz geralmente o nome de outro bicho. O rapazinho voltou e ,
através de gestos, descobriu a verdade revelada e o Soro salvador foi
administrado.
A
Academia Cearense de Medicina , no mesmo dia, homenageou muitos Napoleões : o
médico, o historiador, o escritor, o
humanista, o orador inspirado, o pai de
família exemplar, o defensor intransigente do Cariri, o humorista fino, a ética
de jaleco branco e, mais que tudo : o Homem . É quase impossível conciliar
tantas qualidades numa só pessoa. Em meio a tantas, no entanto, acredito que se
sobressaia a pessoa do Dr. Napoleão, um exemplo de humildade e generosidade. Ele tem
uma raríssima doença oftalmológica: só
consegue ver o lado bom das pessoas. Todos a sua volta só têm qualidades: são
inteligentes, bons, sóbrios, estudiosos, direitos e alegres. Nunca o vi tecer
críticas a quem quer que fosse.Nas conversas com os amigos é aberto, bem
humorado e não tem falsos moralismos. Memória privilegiada, carrega consigo uma
enciclopédia invejável de histórias do nosso doce quotidiano regional.
Dr.
Napoleão já me confidenciou que fica meio cabreiro com as homenagens, segundo
ele, elas são sempre um pouco póstumas. Acredito que todos os nossos atos nesta
terra sempre o são. A cada noite, nunca sabemos se a música que nos embala é um
acalanto ou uma incelença. Mas diante de
uma figura com tanta vitalidade como ele, certamente é a vida que pulsa em cada
título que lhe é conferido. Chesterton dizia que há grandes homens que fazem os
outros se sentirem pequenos, mas o grande homem mesmo é aquele que faz com que
todos se sintam grandes diante dele. Pois bem, meu caro Dr. Napoleão, todo o
Cariri se sente enorme, gigantesco
diante da homenagem merecida que a Academia Cearense de Medicina acaba
de lhe outorgar.
J. Flávio Vieira
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