O
estampido do telefone soou dentro da sua alma , como se tratasse de uma
locomotiva a vapor. É que os últimos meses tinham sido terríveis. Funcionário
de uma estatal, com salário minguado , mas regular, há um ano aderira a um
destes fabulosos planos de demissão voluntária. Não dava mais para suportar o
ambiente de trabalho: cobranças ininterruptas e o chefe olhando pra ele com aquele
cara de carrasco , de “cuidado , você é o próximo!”. Pegou a indenização parca
que lhe pagaram pelo seu suicídio prematuro e abriu um pequeno negócio de
portões eletrônicos. De início a firma andou de vento em popa: com a incrível
insegurança urbana, os homens precisam criar os seus castelos inexpugnáveis,
pensando que assim podem se isolar do mundo. Chegou até a imaginar que a
demissão tinha sido uma das melhores decisões que havia tomado.
Em pouco,
porém, o mercado se viu saturado, eram tantos e tantos outros , na mesma
situação dele, dividindo a mesma fatia
do bolo! Não bastassem as pequenas piabas iguais a ele, com a globalização
entraram peixes grandes no aquário e , aí , a ração só costuma sobrar para os tubarões! Quebrou e se encontrava naquela
situação desesperadora: os amigos antigos se afastaram, os cobradores batiam à
porta a todo instante, os filhos já tinham sido transferidos para escolas
públicas, o aluguel atrasado quatro meses e ninguém mais aceitava seus vales.
Os vizinhos diziam, com sorriso maroto: --“Não
tem crédito nem para comprar a vista!”.
Esse
era o fosso verdadeiro em que se encontrava no exato momento em que o telefone
tilintou , desesperadamente: talvez por isto foi que penetrou tão agudamente no
fundo da sua alma.
---
Trimmmmmmmmmmm!!!!!!
Nos
últimos dias aquele aparelhinho havia feito pacto com o demo. Atendê-lo
configurava-se em causa imediata de aborrecimento. Cobradores circulavam sua
casa , como aves de rapina e as chamadas eram uma espécie de aviso prévio do
ataque faminto e guloso. Assim, pediu à esposa que atendesse e desse uma
desculpa qualquer: saiu, viajou, foi para a missa! A companheira atendeu
contrafeita : já não mais suportava criar estórias fantasiosas e esfarrapadas. O semblante tenso da mulher
relaxou um pouco, quando ouviu a voz do
interlocutor, do outro lado da linha. Conversou pouco e formalmente: tudo bem,
tudo em paz, todo mundo com saúde! Virou-se aliviada para o marido e passou o
fone:
---
Sua mãe!
Num
primeiro momento, sentiu-se aliviado. Nada como ouvir a voz da mãe num momento
destes. Certamente tinha sido o sexto sentido materno que havia , como um
timer, disparado e a impulsionara a ligar imediatamente para o filho. A
velhinha morava em outro estado e andava muito doente: perdera a vista
praticamente, ouvia mal e deslocava-se com grande dificuldade. O filho
pressentia, no entanto, que em meio à tamanha debilidade orgânica, havia uma
força estranha e profunda, aquela energia materna, capaz de reacender as mais
arrefecidas esperanças. No instante seguinte, porém, estacou absorto e vacilou
: seria justo beber aquela última centelha de luz, da sua mãe ? Ela a cederia
com o maior prazer e abnegação, mas seria justo?
---
Mamãe? Tudo bem ? Aqui tudo às mil maravilhas! Os negócios estão crescendo,
como nunca imaginei ! Sou agora um dos maiores empresários do estado!
Reformamos a casa e estou falando com a senhora, neste exato momento, deitado
numa cadeira , na beira da piscina olímpica aqui do quintal. A mulher arranjou
um trabalho na procuradoria do estado e está ganhando uma nota preta. Troquei o
carro esta semana , por um outro do ano e importado. Como o Collor, já não
agüentava estas latas de sardinha nacionais!
Queria até que o seu neto, mamãe, estivesse aqui para falar com a
senhora, mas foi para os Estados Unidos, conhecer a Disney e só volta no fim do
mês. Não vamos poder ir agora no final do ano, infelizmente, porque estou
ampliando a fábrica, mamãe; logo que tiver uma folguinha, dou um pulinho por
aí. Beijo, mamãe! Feliz Natal para a Senhora. Sei que a senhora tá feliz, sei,
não precisa nem dizer.Tchau!
Defronte
dele, a mulher embasbacada, parece que tinha visto fantasma. Ele, calmamente,
desvendou o mistério: Ela, minha filha, está doente , já não pode vir nos visitar
e ver a porqueira de vida que estamos vivendo e mesmo que viesse, está cega,
não viria nada. Quantas vezes ela, na minha infância não fez o mesmo? Seu pai
não tarda a chegar! Quando ganhar na Loteria te dou uma bicicleta! Vou arrancar
este dentinho de leite, não vai doer nada!Esta foi a única maneira que eu
encontrei de dar para ela um presente neste Natal!
A
mulher , entre lágrimas, sorriu! Adivinhou que são afinal estas pequenas
mentiras , estes leves engodos que tornam a vida suportável e que vão realimentando
as nossas baterias gastas, pelo tempo afora
. Sem este filtro cor de rosa, a vida que já é um curta metragem
,surgiria aos nossos olhos, violentamente, com seu verdadeiro , sombrio e cru
preto-e-branco. Estas mentirinhas, afinal, são como um prisma que se interpõe
entre o frio e translúcido feixe de luz da vida e que acaba por fazer a
refração , muitas vezes a transformando na beleza fugaz, mas multicolorida do
arco-iris.
J. Flávio Vieira
Nenhum comentário:
Postar um comentário