J. Flávio Vieira
Mais de três anos sem
cair um pinguinho sequer. Os poços do rio Paranaporã já tinham batido a piaba
há mais de dez meses. Matozinho estava mais seca que língua de papagaio. De
bicho de quatro pés só havia restado tamborete e de avoador : pipa. Verde, na cidade, só se via em
solenidade da prefeitura quando hasteavam o panteão nacional, mesmo assim era
um verde velho desbotado mais puxado para cinza. Ah, havia, ainda, um outro
raro remanescente da antiga esperança : o
pano da sinuca do Bar do Godô. Quem
chegasse de fora, ficaria encafifado como era possível sobreviver em meio
àquela catástrofe. Não se lia, no entanto, nos olhos dos matozenses, nenhuma
aflição descabida. Estavam acostumados ao ciclo natural das intempéries.
Angustiavam-se quando viam os animais serem dizimamos, em série, pela fome e
pela sede, mas lia-se ,no fundo das retinas,
um longínquo verde de esperança, cover daquele que um dia já havia
engalonado as árvores e as vidas.
Afonso
Caititu morava no alto da Serra da Jurumenha nas cercanias de Matozinho, uns
quatro a cinco quilômetros mais perto do céu. Nos últimos dias, havia procedido
ao inventário final pós hecatombe. O que restava ainda para se desfazer e
transformar em víveres ? Deu , então, com um velho Rádio SEMP, ainda alimentado
a válvulas. Lembrou, então, que naqueles dias terríveis se celebrava, por ali,
a festa do santo da capelinha : São Sebastião . Havia um vuco-vuco danado de
gente indo e vindo para as novenas. Do alto de seus conhecimentos de Marketing
de pé-de-serra, teve uma idéia genial. Aproveitaria a festa religiosa e
promoveria um bingo do rádio, dava para arrecadar uns reais e transformá-los em
farinha e rapadura por mais alguns dias, até que outro santo , Pedro, resolvesse
colaborar.
A casa de
Caititu ficava na saída do arruado. Ele , então, providenciou os preparativos.
Varreu todo o terreiro, espalhou cadeiras disponíveis , posicionou o oratório,
do lado de fora, com a clássica imagem de São Sebastião amarrado e trespassado
de flechas ; contratou alguns meninos para fazerem a propaganda de boca em boca e melhorou a iluminação com
algumas lamparinas subsidiárias, movidas a querozene jacaré. De noitinha,
postou-se defronte, com o rádio colocado numa mesinha, em local bem visível, as
cartelas, a cumbuca e pedras em ponto de bala para o início do jogo.
Afonso
havia planejado tudo , detalhadamente. Escapou-lhe, no entanto, um fato
importante. Um vizinho --
Francalino Bemtevi – tivera uma
idéia parecida e pertinho dali promoveu um Forró numa latada improvisada, com o
grande Sanfoneiro da região : Cotozinho dos Oito Baixos. Eram eventos de sobra
para um arruado tão pequenino, mesmo envenenado com o turismo religioso.
Caititu postou-se em frente à casa, esperando, pacientemente, a clientela.
Alguns meninos e curiosos ficaram pelas beiradas esperando o desenrolar das
coisas. Aos poucos começou a chegar a freguesia, mas passava direto para o
Forró. Entre as cartas e o rela-bucho preferiram o esfrega coxa. O tempo foi
passando e, pouco a pouco, iam se dissolvendo as esperanças do nosso promoter.
De início, Afonso ainda tentou se convencer que as coisas mudariam, mas , por
volta de nove horas, caiu-lhe a ficha e o orelhão todo na cabeça. Afobado,
desistiu e começou a colocar as coisas para dentro de casa, numa penosa
desprodução. Enquanto ia e vinha, percebeu, entre os curiosos
que por ali ainda permaneceiam curruchiado. Estavam, cuidadosamente,
mangando dele. Numa das viagens , no leva-leva de coisas, trouxe, consigo, a
velha espingarda soca-soca. Firmou-a no chão, observou a platéia meio
desconfiada e ameaçou:
---
Tô botando as coisas tudo pra dentro. Mas tô avisando! O primeiro filho da puta
que armar um risinho de canto de boca , zonando comigo, eu meto bala. Querem
ver ?
Ninguém
queria, ao menos ali, defronte ao cano da soca-soca. Foram saindo rápido.
Caititu, no entanto, ficou ainda mais fulo da vida, quando ao longe, ouviu as
gargalhadas que se soltavam já fora da alça da mira. Quando pegou por fim a
imagem de São Sebastião, sobrou a raiva para
o santo guerreiro:
---
Vai timbora pra dentro de casa! Num fica olhando pra mim , não ! Devia ter
vergonha : com esses olhos pidão, revirados pra riba, como quem procura rola voando! Pezim levantado, munheca e rejeito moles, todo
flechado... Tome jeito de homem! Tu é loiça, é ? Num zone , não ! Tu nem pode
correr todo ingriziado de imbiriba pra
todo lado! Num venha não, seu fresco !Te
lasco chumbo no rabo!
15/11/13
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