TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Completudes




                                                 J. Flávio Vieira
 
Francisca  Eudóxia da Conceição.  Um nome enorme ! Nem carecia de sobrenome! Eram três nomes próprios se espremendo, como podiam, num só epíteto. Podia ter sido , sim , opção dos pais, se ela , um dia , os tivesse conhecido. Uma embirra qualquer deles ou uma escolha simples pela sonoridade das palavras: uma paroxítona, a martelada de um ditongo crescente, no meio, com ares de proparoxítona  e finalmente a oxítona como fecho. O mais provável, no entanto, é que tenha sobrado para o tabelião, o batismo da menina pobre, sem parentes ou aderentes conhecidos. Ao menos sobraram formas carinhosas de denominá-la :  Chica, Dodó, Ceiça.  Criada por outras almas pobres e, por isso mesmo, generosas, Francisca desde cedo seguiu o curso inexorável do seu destino de órfã. A luta pela sobrevivência tangeu-a da escola. Pequenina ainda ensaiou aprender o bê-á-bá, mas rápido descobriu que não levava jeito para as letrinhas e os números.  Começou como uma espécie de babá mirim de casais mais abastados e, já taluda, fez-se empregada doméstica. Disposta, trabalhava como um mouro, mas facilmente se percebia que a disposição física  buscava compensar uma leve deficiência mental. Mocinha , enrabichou-se por um caminhoneiro – Cacildo do Truck-- e andou juntando os trapos. O amancebo, no entanto, durou pouco. Um belo dia, uns dois meses depois de casada, Ceiça saiu em desabalada carreira de casa e fugiu de Cacildo, a partir daquele dia, como o vampiro do alho. Os patrões apertaram de um lado e do outro tentando saber a razão do desencanto súbito com as hostes matrimoniais. Ela, no entanto, desconversava, ficava trombuda e mantinha silêncio obsequioso.
                                   Eram muitas as histórias de Dodó, espalhadas de casa em casa, por seus múltiplos patrões.  Um dia o dono da casa chegou mais cedo , com ar pesado e cara de pouca conversa. Trancou-se no quarto e ligou um som com um disco de músicas clássicas: Ravel, Mozart, Schubert. Dodó ficou encucada com aquela trilha sonora . Que diabos estava acontecendo ? Acostumara-se às triviais  que curtia : breganejo ou forró puxado para o caribenho. Quando a patroa chegou já à noite, ela, preocupada, derramou sua apreensão:
                                   --- Patroa, a coisa tá feia ! O patrão chegou cedo em casa , se trancou,   e só ouve umas músicas estranhas,penosas ,  aquelas músicas de quando morre presidente...
                                   Chica morava  numa casinha “tomara que não chova” , na periferia da cidade. A vizinhança , na sua maior parte, era um ajuntamento de damas da noite e que borbuletavam por perto, em busca de clientes eventuais. No quenguismo, Chica percebera, havia uma clara estratificação social. Perto dela ficara a zona chamada de “farinhada” e que abarcava os mais lascados dos clientes : bêbados, trabalhadores rurais que vinham para feira, drome-sujos. As meninas, também, tinham perdido o aroma da juventude e, por isso mesmo, foram sendo jogadas, pouco a pouco, para clientes menos exigentes.  
                                   Um dia, a patroa percebeu que a funcionária chegava com sinais claros de noite mal dormida: olhos remelentos, bocejos, cochilos pelos cantos. Interrogou-a sobre a razão de tamanha moleza: entrara também na farra ?  Dodó, então, explicou as razões da indisposição. Passara toda noite acordada, por conta da zoada e burburinho das meninas  nas suas galinhagem e garipagem . Para tanto, usou um coletivo sacro-profano  totalmente inusitado :
                                   --- Não dormi um pingo, patroa ! A noite toda foi uma putaria só,  lá na rua ! Um mundo de quenga viçando !Era a Diocesa das Rapariga ! Vôte !
                                   Um dia,  as funerárias da vila lançaram uma novidade que rapidamente se alastrou,  tornando-se  um dos sinais de status : o carrinho para transportar o caixão. Antigamente o féretro carregava-se nas mãos dos próprios parentes e amigos que se iam revezando neste mister. Ceiça estava varrendo a casa quando ouviu um burburinho na rua. Aproximou-se da janela e percebeu tratar-se de um enterro. Coroas carregavam coroas, na frente ; meninas velas acesas e parentes soluçavam pelas beiradas, seguindo a turba. Dodó estava acostumada àquela atração de cidade pequena: a casa onde trabalhava era próxima ao cemitério local. Notou, no entanto, uma coisa esquisita. O caixão, aderira a uma novidade que não conhecia,  vinha em cima de um carrinho e empurrado pelos circunstantes. Rápido, ela gritou para dentro de casa, alertando a patroa da inovação :
                                   --- Chega,  Madrinha ! Corre ! Vem olhar um defunto andando de bicicleta !
                                   A história da súbita separação de Chica  sempre fora um dos maiores mistérios da vila. Que teria acontecido ? Por que deixara Cacildo, assim tão intempestivamente e, mais, de forma tão  definitiva?  Nem adiantava pressionar Dodó, ela se  danava e fugia do assunto como lobisomem do sol. Um dia, no entanto, numa confissão, Padre Arcelino pressionou. Por que ela tinha quebrado o sagrado sacramento do matrimônio?
                                   ---Casamento que Deus uniu, D. Francisca, só a morte separa ! Isso é pecado grave !
                                   Chica, chorosa, então, resolveu quebrar o segredo mais guardado que o terceiro de Fátima.
                                   --- Seu padre ! Eu cumpria minhas obrigações. Naquele dia, o diabo Cacildo chegou bêbado e com o cão nos couros. Pois , seu padre, ele queria era me acunhar por trás, já pensou? Espia !  Eu fiz foi rifugar ! Ele pensava o quê?  Que eu era mulé compreta ? Naaaannnn !

Crato, 16/05/14 

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