J. Flávio Vieira
Equício vivia encafifado com aquele
mistério quase que kafkiniano. Estava ali , como um Sócrates moderno, tentando entender os destinos do mundo. Ou
como um Hamlet , reencarnado, com seu tablet
erguido em feitio de caveira, e sua dúvida remasterizada :
-- Ter ou não ter, eis
a questão!
Como teria sido possível, remói o nosso Equício,
a humanidade ter sobrevivido por tanto e tanto tempo, sem o Smartphone ? Houve vida neste planeta antes da Internet ?
Para que serviam os dedos e as mãos se não podiam deslizar nas telas de LED ?
Houve uma época em que as pessoas precisavam ainda falar, se encontrar, se
locomover para terem qualquer atividade social! Já se imaginou uma loucura
dessas? Hoje essa maquininha faz tudo isso por nós! O livro que gostaria de ter
está aqui dentro, a musiquinha que quero ouvir está à distância de um toque, o
filme , a voz da namorada, a pizza, as compras , tudo está perfeitamente ao
alcance de Equício, com um simples deslizar de tela. A coisa ficou fácil,
prática e sobra tempo e mais tempo para a gente curtir esta viagem leve e curta chamada de vida. Nossos avós, pensa
Equício, precisavam se desdobrar para conseguir a caça, para descolar o
alimento, para sobreviver em meio às enfermidades, às guerras. As mulheres
tinham, biblicamente, os filhos com dor, não existia energia elétrica, rádio,
TV, cinema. Já pensou na loucura do mundo
sem shopping? Do almoço sem Mac Donald´s ? De ter que fazer a própria comida? E o
deslocamento em lombo de burro? Um mundo sem carro, sem moto, sem trem bala e
sem avião ?
--
Como eram infelizes nossos avós !
Equício tem essa revelação na fila do ônibus, onde
aguarda , pacientemente, a volta para casa. Tudo depois de um longo dia de
trabalho, como office-boy num escritório de advocacia. Com sorte chegará umas dez horas da noite e às
quatro terá que recomeçar de novo o trabalho de Sísifo. Aproveita e manda um SMS para a namorada que
já não vê há uns dez dias. Pelo WhatsApp
conversa com alguns amigos que lhe
mandaram mensagens e vídeos. Lembra que
precisa organizar um fim de semana para visitar os pais. Internos num
abrigo de idosos , depois que se foram se transformando num estorvo para a
família ( infelizmente ainda não existe, nesses casos a tecla “Deletar”) , ele
já não os contacta há uns três meses.
Quando o ônibus , por fim, sai em meio ao
congestionamento, Equício vai
observando, hipnotizado, as luzes dos teatros, dos cinemas, dos museus da
cidade grande. Quantas opções de divertimento nós temos! Um fim de semana desses, vou tirar para visitá-los!
Chegando à parada, desce, veloz, na
velocidade típica dos novos tempos : a número cinco do créu. Olha para um lado
e para outro, temendo o trombadinha. Nem
percebe, no céu, uma lua cheia argêntea, esplendorosa, totalmente supérflua nos dias de
hoje, ao alcance de um simples olhar. Nem sabe que , a despeito de tudo, as
Cataratas do Iguaçu continuam caindo com clamor e sem chips; o mar persiste
quebrando suas ondas, ritmicamente, em Paraty, sem nenhum App; o Amazonas corta
a floresta sob a música dos pássaros e o
mergulho incontrolável dos peixes. Equício pega,
por fim, seu Santo Graal, o aparelho pequenino que lhe dá poder, magia e segurança e que lhe serve como filtro do
mundo. Pronto ! Eis o
admirável mundo novo : A solidão está perfeitamente atingível a um
simples toque !
Crato, 03 de Julho de 2014
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