O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela
Belém-Brasília rumo ao Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas.
No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar
generoso, o cerrado verdejante era um presépio, todo poesia e misticismo. As
aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes
heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz. -Por
que você faltou esses dias todos? -É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio
da fazenda. Risadinhas da turma. -Não se diz “nóis mudemo” menino! A gente deve
dizer: nós mudamos, tá? -Tá fessora! No recreio as chacotas dos colegas: Oi,
nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo! No dia seguinte, a mesma coisa:
risadinhas, cochichos, gozações. -Pai, não vô mais pra escola!- Oxente! Módi
quê? Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse: - Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da
mininada! Logo eles esquece. Não esqueceram. Na quarta-feira, dei pela
falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira
seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário
de classe e soube que se chamava Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o
endereço. Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapaz
tinha partido no dia anterior para casa de um tio, no sul do Pará. -É,
professora, meu fio não aguentou as gozações da mininada. Eu tentei fazê ele
continuá, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia
di tê ficado na fazenda coa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo
errado. Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli em seco e me
despedi. O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total
esquecimento, ao menos de minha parte. Uma tarde, um povoado à beira da
Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi,
acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia. -O
que é, moço? -A senhora não se lembra de mim, fessora? Olhei para ele, dei
tratos à bola. Reconstitui num momento meus longos anos de sacerdócio, digo de
magistério. Tudo escuro. -Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde?
Foi meu aluno? Como se chama? Para tantas perguntas, uma resposta lacônica: -Eu
sou “Nóis mudemo”, lembra? Comecei a tremer. -Sim, moço. Agora lembro. Como era
mesmo o seu nome? -Lúcio –Lúcio Rodrigues Barbosa. -O que aconteceu?
- Ah! fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo
amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro. Fui boia-fria, um “gato” me
arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como
escravo, passei fome, fui baleado quando conseguir fugi. Peguei tudo quando é
doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante as veis fais coisa sem querê
fazê. A escola fais uma farta danada. Eu não devia tê saído daquele jeito,
fessora, mais não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui
falá direito. Ainda hoje não sei. -Meu Deus! Aquela revelação me virou pelo
avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente.
Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do
rapaz que me olhava atarantado. O ônibus buzinou com insistência. O rapaz
afastou-me de si suavemente. -Chora não, fessora! A senhora não tem curpa. Como?
Eu não tenho culpa? Deus do céu! Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem
flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de
aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina. Hoje tenho raiva da
gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos... Super usada, mal usada,
abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato
da língua materna, a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e
colegas – e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando,
ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela
idade. E os lúcios da vida, os milhares lúcios da
periferia e do interior, barrados nas salas de aula: “Não é assim que se diz, menino!” Como se o professor quisesse dizer: “Você
está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão
errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Você não seja
você! Renegue suas raízes! Diminua-se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja
uma sombra!”. E siga desarmado para o matadouro da vida.
(transcrito do site do Luis Nassif)
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