J. FLÁVIO VIEIRA
Vivendo em áreas inóspitas, onde a
sobrevivência parece mais uma dádiva dos céus, a pobreza , nos
cafundós-do-judas , desenvolve técnicas
de guerra contra os rigores da natureza. Sabe que qualquer pequeno detalhe pode
ser crucial e muitas vezes o determinante entre a vida e a morte. Talvez, por isso mesmo, a solidariedade seja
um sentimento bem mais presente por ali que nas grandes metrópoles, onde somos
todos estrangeiros dentro do mesmo país. Nos grotões, o sofrimento
e a sequidão ao derredor umedece as almas e as torna mais maleáveis e
afáveis. A cacimba e o paiol passam, facilmente, a ser bens comunitários.
As cercas das senzalas naturalmente se desfazem
, como que dando exemplos pedagógicos aos muros da casa-grande.
Em Matozinho, assim, logo
que a TV anunciou a Seca no Sudeste do Brasil, a gandaia se agitou. Conhecia bem aquela paisagem cinza : leitos
dos rios se transformando em estradas, carro pipa sendo disputado a tiro. Os matozenses , de conversa em conversa,
começaram a se preocupar. A notícia, porém, não lhes causou estranheza, ora o Beato já havia até cantado a
pedra: “O Sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão!”. O problema, na visão
dos matozenses, é que os sulistas são mofinos danados e não entendem desse negócio de seca. Faltou chuva um mês
por lá, dá desespero, neguinho bota pra chorar e fica esperando o fim do mundo.
--- Aqui, nós já somos
tudo bargados.Tem peixe em Matozinho com três anos de idade que ainda nem sabe
nadar! Tem menino já encabelando que, quando vê chuva caindo, sai correndo
doido pensando que o céu tá se rasgando! Essa miuçaia das bandas de lá, tudo
engravatado e cheio de carambas e uais não aguenta o arrocho, não!
Foi
pensando no aperreio do povo do Sudeste
que Sitônio da Furquia, um marcador de cacimba de Matozinho, resolveu fazer um
adjunto para ajudar os irmãos do Sul neste momento tão ressequido e difícil.
Sitônio viera dos Inhamuns e se gabava de entender do assunto como ninguém.
---
Comi palma frita, mucunã lavada nove
vezes, espremi mandacaru e raiz de imbu pra tirar a água. Em estiagem sou PhD !
Sitônio
reuniu alguns amigos mais próximos e criaram um Coletivo que matuto agora,
depois de Lula, tá é chique meu filho ! O famoso C.L.P. – Coletivo Língua de Papagaio. O objetivo
principal era desenvolver técnicas
anti-estiagem com o fito de ajudar os irmãos do Sul, nestes novos tempos
de choro com lágrima em pó e ranger de dentes sem saliva. E lá se reuniram
inúmeros especialistas no assunto: esgotadores de fossas, tiradores de
mel-de-abelha, profetas de chuva, caçadores de tatus, curiosos e
sobreviventes. Aos poucos , nas reuniões,
o CLP foi catalogando pontos importantes a serem desenvolvidos. Técnicas de
marcação e cavamento de cacimbas e poços; plantio de xerófitas aguaceiras como
imbu, mandacaru e palma; economia de água catalogada no seguintes pontos: banho em dedal, banho de cuia, sabugo e caco
de telha, uso de espanador como papel
higiênico, tapagem e reparo de vazamento de potes, jarras, cabaças e ancoretas;
aproveitamento de fontes alternativas como : barriga d´água, água de joelho. O
Coletivo Língua de Papagaio já tinha organizado todo um Dossiê e dirigiu-se ao
prefeito Sinderval Bandeira que prometeu levar a questão adiante, quando , por fim, as eleições terminassem. É
que, em período eleitoral, nada sai do lugar, o país todo pára e só se pensa em
voto. Nem mesmo paulista dá por falta da
água !
Passada
a eleição, Sitônio já se preparava para se dirigir à prefeitura com as ideias
escritas, num grande calhamaço de papel almaço, pelo escrevinhador geral da
CLP: Totonho das Cabaceiras. Pensava em dar continuidade ao projeto , formar a
equipe e oferecer os serviços de consultoria aos sulistas que andam mais perdidos que
tucanos em noite estrelada. À noite, no entanto, “Da Furquia” soube da ruma de
impropérios que o povo do sul estava jogando em cima dos nordestinos, por conta
do resultado da eleição. Chamados de burros, de idiotas e ameaçados de morte
até, por terem votado segundo sua própria vontade. Tinha até uns jornalistas
inflamados, rogando praga, falando numa tal de
separação: apartar o Brasil em
duas bandas: a sabedoria e progresso na parte de baixo e a burrice e o atraso na porção de
riba. Sitônio, fulo da vida, chamou uma reunião de emergência do CLP.
Decidiram, por unanimidade, cancelar a assessoria proposta ao Sudeste.
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Pois se é assim que vocês querem seus brocóios, que assim seja ! Guerra é
guerra ! Cuidado com a lambedeira de doze polegada no vazio, viu ? Se vocês não
aguentam o pote, como não vão se meter a pegar na rodilha ! Uma ruma de maricas
desses que se caga com medo de seca,
ainda tem a cara de pau de querer desfazer de nordestino ! Querem
separar o Brasil? Pois lembrem que aqui em cima vai ficar o cuscuz, a tapioca,
a buchada e a galinha de cabidela. Pois
se lasquem na seca que não vamos ajudar ninguém , não ! Querem água, é ? Pois lá vai : Azeite , senhora vó !
No
mesmo dia andaram dando uns safanões num pobre mestre de couro de Matozinho.
Motivo ? Por azar, o homem tinha o nome
de “Sulino”.
Andaram
comentando, dias depois, na praça, que Sitônio tinha botado um nome muito
esquisito numa jumenta do seu roçado. Dias depois, alguns membros do CLP
passando por ali, mataram a charada. A
jumenta estava sendo coberta, na manga, pelo jumento de lote. Meio agoniada com a virilidade excessiva e
monumental do companheiro, tentava se
safar , em vão, do assédio sexual, subindo uma ribanceira. Nisso, ouviu-se quando Sitônio gritou,
revelando, por fim, o apelido estrambótico que colocara na biroba:
--- Aguente o ferro ! Num rifugue não , viu, seu Diogo Mainardi !
Crato,
06/11/14
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