VINÍCIUS: O ANARQUISTA.
Anarquista medular. Não precisa
nem raciocinar. Ele é. E muito superior a este pessoal do curvar-se ao poder do
Mercado. O Deus Mercado, provedor de sonhos, vitórias e escárnio aos
perdedores.
Vinícius nasceu numa ilha, mas
desenvolveu-se no continente. Especialmente entre a Cidade e Ipanema. Os bares
nunca tiveram tempo de senti-lo ausente. Sem saudades. Numa esquina, na metade
do quarteirão e um grande desejo de fundir-se ao Rio enquanto a eternidade
durasse.
Jovem. Ousado. Andou nas areias
das praias, na aspereza das pedras, embora úmidas do mar, nos tapetes macios e ajoelhou-se
em êxtase com os olhos fervendo de desejo ao corpo delas. Amou. Principalmente
tinha a maldição do amor eterno.
E fez-se em roda de música. Com o
fluir das palavras em sonoridade, das revelações profundas do ser, da explosão
emotiva das contemplações, da denúncia ferina das traições e dos éditos
ditatoriais. Tornou-se o símbolo de uma época. Uma trilha para se transitar.
Mas Vinícius sumiu de cena.
Ninguém mais o viu. No centro, em Ipanema, nalgum restaurante de Copacabana, em
qualquer bar do Leblon. Nas tocas edificadas da civilização a ausência
permanente. Tornou-se lenda dos desaparecidos. Quem sabe na “Curva do Calombo”
na Lagoa.
E por acaso tive acesso ao
sumidouro do Vinícius. Depois da Fonte da Saudade, na subida da Sacopã.
Apartamento de fundos. Virado para a mata. Úmido e penumbroso. Pela janela a
sabiá canta na mata e os macacos pulam de galho em galho e chegam às janelas
por um pedaço de vida qualquer.
- Caramba! Que sumiço!
- Não existe eclipse algum. É a
vida. Vivo a felicidade de ter envelhecido. A liberdade do meu corpo seguir os
estímulos constantes do mundo. Sem regras. Controles. Clareamentos. Defesas.
Atento ao discurso de Vinícius.
- A velhice é uma adolescência
radical. Infinitamente mais radical. Todos os órgãos começam a funcionar na própria
regra. Ninguém obedece mais à ditadura da totalidade. Partes abandonam o corpo
por vontade própria, dentes, cabelos, a tesão, o fluxo da urina, o ritmo
digestivo. As regulações perdem os roteiros, ritmos, regularidades,
compensações e toda esta lei de mercado e vivem uma anárquica e bela arritmia,
elevam-se os níveis tensionais, afrontam-se os órgãos reguladores. E a beleza de
todas as belezas, as células deixam a escravidão fisiológica e se multiplicam
em outras formas, em funções fora da regra, invadem o lugar daquelas ainda
escravizadas. Há uma linda e incomensurável afrontamento deste corpo burguês. O
refúgio dos covardes.
Os olhos acesos à beleza da
anarquia em estado puro.
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