Aquele
dezembro nunca mais sairia de mim. Ao completar dezoito anos e
conseguir os documentos, eu deveria enfrentar o mundo. O arraial e a
agricultura não me mereciam mais. Desde o tempo do meu avô era o
Amazonas, o Maranhão ou São Paulo. Mas, se o Tio Fausto findou-se
nos seringais e se o meu pai foi pro Maranhão e a malária o
enterrou por lá, a saída era São Paulo.
-
Viu como o Galdino vive feliz? Gordo, corado, roupa bonita e fala
diferente, nem parece o matuto que saiu daqui. Trabalha numa usina de
açúcar e álcool em Ribeirão Preto, ele certamente o ajudará.
Salgueiro,
Conquista, Valadares, Taubaté, São Paulo... A sorte, o sul, a
estrada, quase três dias depois, o semi-leito chegava a Ribeirão e
encontrei o Galdino. Ele era chefe de turma, controlava os
bóias-frias e logo eu estava entre eles, morando no barracão e
cortando cana de sol a sol. Meu Deus, a vida no arraial era bem
melhor.
Lembrei
do Luiz Marcondes, acertei as contas no armazém e fugi prá São
Paulo. Diziam que ele trabalhava num banco e morava em Santo Amaro.
Fiquei surpreso, pois Lula morava num quartinho com outros baianos,
de dia dormia num colchonete e à noite, na Avenida Paulista, fazia
faxina de escritório. Morreu ingênuo e bom, pra sempre um escravo
no norte e no sul.
Desempregado,
eu quase me desespero até conseguir ser auxiliar de limpeza num
prédio suspeito do Largo do Arouche. Anos depois, era o porteiro da
noite. À tarde, antes de entrar no trabalho, sob a garoa, vagava
pela Praça da República, lia cordel e ouvia Jackson do Pandeiro em
lojas de discos na Ipiranga e na Avenida São João. Num desses dias,
assisti o Joelma pegar fogo e o desespero das pessoas em
chamas saltando para a morte.
Dormia
pouco e voltei a estudar. Sara Levy, professora de História, se
impressionou com a minha memória, o meu interesse pela leitura e o
meu espírito inquieto. Aos poucos, terminei o segundo grau. Ela me
achou parecido com um vizinho, me arranjou emprego de frentista no
posto de gasolina do Isaac e me indicou uma pensão. Hoje moro no Bom
Retiro e me sinto à vontade no bairro.
Sara
é gordinha, ruiva, míope e num domingo me surpreendeu convidando-me
a almoçar com seus pais. O seu pai me achou parecido com um parente
distante e disse que no Nordeste houve miscigenação judaica. Ele me
ensinou que no Brasil o descobrimento e a colonização devem muito
aos cristãos-novos e que naquele tempo os judeus eram a elite
intelectual da península ibérica. Com a perseguição da
inquisição, Portugal e Espanha nunca mais se acertaram.
Ela
me emprestou vários livros e o que rola entre nós não é somente
amizade. Iniciei um curso de judaísmo e agora sei que os hebreus
criaram o monoteísmo, aboliram o sacrifício humano como tributo aos
deuses e que os dez mandamentos formam a base da civilização
ocidental.
O
Senhor não se esqueceu de mim. Hoje sou chefe dos frentistas e ando
muito entusiasmado. Aos poucos vou me descobrindo. Fiz circuncisão,
não trabalho aos sábados e frequento regularmente a sinagoga. O
rabino aguarda o meu teste de DNA. Se revelar algum traço israelita,
me casarei com Sara, e seu Moisés vai dar uma grande festa.
Porém,
meu sonho mesmo é abrir uma sinagoga em Juazeiro e voltar pra minha
terra. Aqui, quase não saio, quase não tenho amigos - mais uma rês
desgarrada na multidão boiada caminhando a esmo.
Agora,
o tempo inteiro, imagino a cara da minha mãe quando eu voltar pro
Juá, com a barba batendo no peito, o quipá na cabeça e a estrela
de Davi tatuada no braço: Vixe! Sei que os romeiros vão
ficar furiosos, mas eu não sou um perdedor: Shalom!
DR. DEMÓSTENES RIBEIRO (CARDIOLOGISTA)
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