Perfume de Gardênia
No
avião, mais uma vez, lembrei de tudo. A casa e o jardim. A minha mãe
trazendo a comida caseira, o meu pai - à cabeceira da mesa - e os
oito filhos sentados na posição de sempre. Naquela época era
assim. Ao anoitecer, o velho na cadeira de balanço, o cafezinho com
os vizinhos e as conversas repetidas de um dia-a-dia feliz.
Uma vez por ano ele ia a
Recife ou a Fortaleza e fazia uma grande compra para a loja. Numa
dessas viagens, trouxe uvas e maçãs, sabor quase desconhecido para
mim. Em outra, uma bola de couro e, em uma outra, o dicionário com o
reino encantado e soberano das palavras. Contou que no São Luiz,
assistiu a “A Ponte do Rio
Kwai,” se comoveu com o sofrimento dos ingleses e eu nunca
mais esqueceria a melodia do filme. Depois, chegou o grande rádio de
pilha e o meu velho sintonizava o Rio de Janeiro. Era um tempo da
“Ave Maria” com o Júlio Louzada, do Repórter Esso e do Altamiro
Carrilho e a sua bandinha.
Havia
o Grupo Escolar e antes da aula as crianças cantavam “terra do
sol, do amor, terra da luz...” Na fila, um menino bem arrumado, com
gravata borboleta, destoava dos outros. Era criado por uma tia e
parecia assustado. Anos depois, o Ginásio e o padre severo, o maior
dos benfeitores daquela comunidade.
Na
entrada da cidade, a prefeitura imponente e verde. A igreja, a capela
de São Francisco, o cinema, a praça principal e a sombra das
algarobas. O trem, de Fortaleza ao Crato, interrompia brevemente a
tertúlia, mas logo recomeçava a festa. O mundo inteiro era
esperança e alegria: tempo de inocência, juventude e fé.
Mas,
quando desembarquei, percebi que tudo mudara. O trânsito perigoso e
a sinalização inadequada. A usina fantasma e o canavial, quase
extinto, não mais ondulando ao vento. E na minha cidade tudo parecia
mal cuidado. A prefeitura em um amarelo ressequido, o grupo escolar e
a estação ferroviária abandonados. Ruas estreitas e esgotos a céu
aberto, mercados desativados e praças descaracterizadas. Na calçada,
sem coragem de entrar, observei a casa. Sem flores no jardim, ela
parecia menor e oprimida, todos partiram, a sua pintura descascava e
não mais havia o menino que ali morara. As casas também sentem
saudades?
Antes
da volta, entrei no shopping center. Como em todo lugar, restaurantes
fast-food e lojas de grife com letreiros em inglês. Antevi um mundo
de obesos e a escravidão do cartão de crédito. Suprema heresia, o
templo do consumo e da segregação social, o dragão da maldade na
cidade da fé. Ali, ninguém sabia do “Boi Mansinho” nem
da Beata Mocinha, e nada seria mais exótico do que um
romeiro naquele lugar.
Depois,
no avião, curvado à realidade cruel e à impiedade do tempo, fechei
os olhos e escondi as lágrimas. Cantei baixinho “Perfume
de Gardênia,” adormeci e sonhei com o sol nascendo sobre as
moças da Beira Mar.
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