Aproximava-se o dia do
idoso e eu escreveria uma reportagem sobre a terceira idade. Cheguei
cedo ao abrigo e ao me entrosar com vários internos três velhinhos
não me largaram mais. Falavam da vida e entre eles transparecia
grande amizade.
Um deles na infância
imitava Joselito e, ao cantar “La Paloma,” também foi chamado de
“Pequeno Rouxinol.” Já adulto, sentindo-se um Orlando Silva, se
apresentou no show do Mercantil e por pouco não se tornou a voz
orgulho do Ceará. No entanto, tudo se transformou e ele perdeu
espaço. Restaram-lhe as churrascarias e o apelido de Zé Seresta.
Outro senhor, o Adelino,
violão debaixo do braço, perdeu-se no alcoolismo e no difícil
caminho da música instrumental. Fumava muito, tinha mania por
anúncios fúnebres e ao perceber meu interesse por música
surpreendeu-me com o choro número um de Villa-Lobos, logo após a
minha chegada.
Um outro, mulato alto de
carapinha branca, no abrigo tornou-se o Coronel. Repetidamente, em
posição de sentido, ele prestava continência às pessoas e queria
tudo em ordem. Era admirador dos militares e muito respeitado. Quando
jovem, no Rio de Janeiro, matara mendigos para limpar a cidade e
teria sido segurança do Lacerda quando do suicídio de Vargas.
E os três destoavam
da tristeza geral. O dia passando e histórias se sucedendo ao sabor
de lembranças, simpatias e antipatias pessoais. Assim, a velhinha de
terço na mão era mais uma viúva que deu a vida pelo marido e
filhos. O velho calado e abandonado pela mulher mais nova, herdou uma
depressão incurável. E aquela, que fazia tricô e ficou pra tia ,
no seu delírio, invejava a prima que fugiu com um trapezista de
circo e nunca mais voltou.
Alguns sequer sabiam de
parentes e não recebiam visitas. A ex-dançarina da TV não se
apercebeu do tempo e insistia na saia curta, no batom e no decote,
sonhando com um milionário chinês. E o mantra incessante do médico
demente: quem fui, quem sou e quem serei... Ali, a principal doença
era abandono e solidão.
Muitos me cercaram e
fiquei pensando... Fez-se, então, um silêncio ensurdecedor quando
passou a maca com o lençol branco envolvendo um corpo. Todos
entenderam: alguém terminara a viagem feroz, traiçoeira e sem
finalidade. Ao violão, Adelino iniciou a “Marcha Fúnebre” e o
Coronel, solene, balbuciou “do pó viestes e ao pó retornarás.”
Mas, de repente,
Esmeralda, a cuidadora boazuda, apagou o cinza. Ela empurrava a
cadeira de rodas com a mãe de um deputado. Adelino, brejeiro, mudou
rapidamente a música e Zé Seresta – eterno dom-juan – mirou
aquela bunda, ajeitou a peruca e atacou, imitando Nelson Gonçalves:
“quando ela passa, florindo a calçada, pisando macio ... pecado
ambulante!”
(publicado no Diário do
Nordeste – pg. 3. 27.7.14)
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