TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
domingo, 19 de agosto de 2007
O Ovo do Sonho
Por um momento ainda tentou acreditar , enquanto cantarolava: "Eu sou o bom, sou o bom, sou o bom....", tentou acreditar que a imagem refletida no espelho do banheiro era a sua . Era sim aquele ali era o "Negro Gato de Arrepiar" , o tremendão espedaçador de corações; não havia nenhuma dúvida. Há pouco recebera o convite de um Cara, convidando-o para uma Tertúlia, uma reunião jamais imaginada: os mais importantes Conjuntos musicais do país: The Fevers, Os Pholhas, Os Golden Boys , ali estariam num encontro inimaginável e histórico. Ensaiando os passos ziguezagueantes do Twist, arrancou do Guarda-roupa a velha Calça Lee , boca de sino; o empoeirado sapato cavalo de aço; a Camisa Volta ao Mundo e o negro blusão de couro. Com habilidade arqueológica, exumou da gaveta o colarzão metálico e o pôs cuidadosamente no pescoço, após vestir toda aquela indumentária em feitio de armadura medieval que, não entendia bem porque, ainda ontem tão perfeita, hoje mal cabia no modelo. Aplacou um pouco o cheiro de mofo das vestes com o inconfundível : "Topaze" da Avon. No momento exato em que banhava a vasta e negra cabeleira com a insuperável Brilhantina Glostora , é que lhe veio o primeiro sobressalto: havia algo de errado com a lâmina do espelho( Ah essa tecnologia moderna!): a juba refletia-se estranhamente rala , teimando em não fazer topete e em não cair nos ombros, e, possivelmente por conta do reflexo da florescente, os cabelos mostravam-se grisalhos, como se alguém (quem sabe, o tempo?), numa daquelas freqüentes gozações, lhe tivesse atirado Maizena. Rapidamente desviou o olhar para as costeletas : duas botinas de cano largo, que ali estavam tal e qual um elmo : de fazer inveja ao próprio Elvis. Solfejando: "Vejam só que Festa de Arromba, noutro Dia eu fui parar"... folheou desordenadamente a velha agenda, até encontrar o telefone da Mariazinha : Será que ela ia para a Tertúlia? Tantas vezes me rejeitou "só porque sou pobre demais", pensou. Quem sabe ,hoje, a lábia tradicional, a cantada tantas vezes insulsa não faria efeito? Tentou discar várias vezes. Não entendia por que , sempre atendia uma voz chata e monocórdica pedindo para verificar novamente o número, que não tinha 07 dígitos, dizendo ser de uma tal de Telemar . Nem sequer falava na SERTESA.
--Encontro com ela, por lá!
Na rua buscou com os olhos o famoso "Mustang Cor de Sangue". Como só avistasse um fusquinha estranhamente familiar, entrou cantando "Meu Calhambeque, bibite..." Ah! Mas o carango não quis pegar na chave, pois aí pegou no tranco mesmo : "With a Little Help From My Friends". Saiu em disparada, como que derrapando nas tortuosas curvas da estrada de Santos e ia matutando com seus colares: "Existem mil garotas atrás de mim .
Entrou no Clube. Aos poucos, na penumbra, foi reunindo a velha patota. Estavam lá , alegres todos , mas um pouco distantes , como se atônitos se mostrassem sobreviventes de alguma catástrofe longínqua e impalpável. O Rum com Cola foi desanuviando os semblantes e , em pouco, estavam todos no ponto, morou? No palco, os Fevers apareceram quentes como nunca. Enquanto os Pholhas tocavam, alguém se lembrou, discretamente, de algum outro tipo de folha bem mais inflamável e que rolou incandescente de mão em mão , levando, magicamente, os jovialíssimos Golden Boys a brilharem em feitio de cometa, como certamente nunca tinham resplandecido até então.
--"Bicho, olha quem tá ali!"
Não soube nunca ao certo quem teve, na rodinha, aquela iniciativa. Olhou do lado e ali estava, a paixão da sua vida; aquele broto a que mais amou . E dela, até aquela data, sequer ao menos tinha ganho um beijo, um toque mínimo que fosse... ou seria por isso mesmo que tanto ainda a amava? Algum louco já dissera ela tinha se casado e separara há pouco tempo, mas agora, não tinha nenhuma sombra de dúvida: tinha sido, ao certo, um simples namoro, uma volátil chuva de verão. Mariazinha era a mesma menina na sua saia plissada, nos seus olhos negros, profundos e expressivos ; no seu sorriso sensual, leve e enigmático. Tentou balbuciar alguma coisa, algo assim como: "Você é o tijolinho que faltava na minha construção"... mas percebeu que todas as palavras pareciam supérfluas e desnecessárias: a orquestra atacava de "And I Love Her ". Simplesmente tomou-a nos braços e começaram a dançar num espaço infinito, etéreo e atemporal, como se passado e presente houvessem se fundido: como se a vida tivesse se iniciado naquele exato momento, rompendo com estardalhaço o ovo do sonho que havia hibernado por tantos e tantos anos...
J. Flávio Vieira
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3 comentários:
Zé,
Gostei muito do texto, rapaz! Esse repertório todo desfiei numa banda que foi "crooner" pelas tertúlias do Treze Atlético Juazeirense, Cetama de Barbalha. Boite Ferrrer, etc.
Um abraço,
Salatiel
Zé,
Quem viveu esse tempo, tem do tempo, todas as notas, na cabeça! Eu ainda quero ser Mariazinha de alguém...alguém que não vem!"... não vindo, não vindo...a vida tem fim!" Outro dia, até disse ,brincando ,para uma amiga: Lembra da novela: A gata comeu? A protagonista(Cristiane Torlonni) perde a memória, e resolve dar uma festa,e convidar todos os seus noivos do passado... Eu também queria reunir numa festa todas as pessoas que namorei platônica ou
verdadeiramente...Eles poderiam chegar acompanhados... ( pra não haver riscos de recaídas)E, num ponto alto...Eu lhes faria uma homenagem personalizada!
Cada pessoa, a gente associa a um perfume, uma música, um local...
Bom...Essa festa pode ser virtual!
É o repertório que meu pai ouvia todo santo domingo, quando eu era criança...
(é assim que a gente rouba os lugares de memória dos outros)
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