TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
sábado, 4 de agosto de 2007
Sassaricando
Olhei para Joaquim e ele me respondeu com aquilo que achou que o meu olhar perguntava:
- Existem limites que não devem ser ultrapassados. Se ultrapassar muda de fase.
- Mas ultrapassar limites é da natureza humana. Respondi em cima do que ele me dizia. Na verdade eu não sabia ao que Joaquim se referia. Até então estivéramos conversando, no restaurante, numa roda de seis casais. O assunto era o frisson que a peça Sassaricando fazia na mídia e nas conversas da cultura nos últimos dias aqui no Rio. Um dos casais já tinha assistido e se desdobrava em elogios à peça que praticamente era um musical com marchinhas antigas de carnaval.
Aliás, nestes tempos de "guerra civil" nos morros cariocas, a cultura escapava pelo passado da cidade maravilhosa. O espetáculo a respeito do Cauby Peixoto dominou a conversa e a tônica da narrativa eram os sorrisos e a alegria saudosa de um tempo que era mais tempo da cidade. Por isso mesmo Sassaricando – todo mundo leva a vida no arame, virou uma fuga de velhos carnavais – pra onde você for eu vou atrás, o seu rebolado é bom demais...
Joaquim e a Lisieux também tinham ido e ela estava exultante com a experiência ocorrida ainda na noite passada. Naquele exato momento fiquei muito feliz, o casal passava por um desmame que nem os bebês mais chorões verteriam tanta água. Estavam na base do Noel Rosa: seu português agora foi s´embora, já deu o fora e levou seu capital, esqueceu quem tanto amava outrora, foi no Adamastro prá Portugal, prá se casar com uma cachopa, e agora com que roupa, com que roupa, eu vou, pru samba que você me convidou, com que roupa, eu vou, prú samba que você me convidou.
O filho Rafael, destino de pintor, filho do renascimento, virara gaúcho. Ia a busca de sua prenda e o casal, acostumado ao menino que teimava crescer, não vira que ele dizia: Eva querida quero ser o teu Adão, dar-te-ei, o meu amor, a minha vida, em troca do teu coração. Hei de conquistar o teu amor se Deus quiser, custe o que custar, haja o que houver, serei capaz de qualquer prejuízo, mas te darei um paraíso.
Um pouco antes do referido olhado, Lisieux, no entusiasmo da anterior noitada feliz, comentara que tinham ido e voltado numa destas Vans que transportam freqüentadores dos teatros e das casas de show do Rio de Janeiro. Copacabana, princesinha do mar, pelas manhãs tu es a vida a cantar e a tardinha o sol poente deixa sempre uma saudade na gente.....é o bairro do Joaquim desde que nasceu nos idos iniciais dos anos quarenta. Dizem os americanos, e Joaquim confirma, os dez ou quinze anos após a segunda guerra mundial foram os mais felizes do mundo Ocidental e, por tabela, do Rio e de Copacabana. Nesta ocasião foi que, vendo o entusiasmo de Lisieux e sabedor das dores de cotovelo que passava, olhei para o Joaquim como a demonstrar a minha surpresa e até mesmo alegria. Este olhar enigmático, meio Mona Lisa, deve ter provocado a resposta dele lá do início.
A minha resposta também lhe parecera sem sentido e aí ele, com aquele riso maroto que guarda antes de alguma sacanagem, narrou o que segue.
- Ontem me senti tão velho. Como nunca me senti antes – parecia que eu ouvia uma daquelas marchinhas: "não quero broto, não quero, não quero não, não sou garoto pra viver mais de ilusão, sete dias da semana eu preciso ver minha balzaquiana". – A Lisieux resolveu ir de Van e já no telefonema o serviço perguntou se ela queria algum recurso especial, como uma cadeira de rodas, para facilitar o acesso do marido. Quando a Van encostou e abriu a porta, toda Rue de Rivoli espalhou-se pelo Morro dos Cabritos. Duas senhoras, coloridas, cheirando a perfume francês, a pele esticada de dúzia de procedimentos plásticos, já estavam sentadas. O motorista achou a mim e a Lisieux um casal na flor do vigor e por isso mesmo nos enviou para o último banco. Naquela posição, facilitaríamos as grifes, os colares de pérolas falsas, as bolsas indefectíveis, as camadas de cosméticos que entravam em cada parada da Van junto com a dificuldade deambulatória da ampulheta dos tempos. No interior da Van o ar fora tomado por uma atmosfera de perfumes de todas as fragrâncias prováveis e improváveis, exóticos e triviais que as narinas podem distinguir. Após um dado tempo havia uma soma de todos os perfumes, o silêncio circunspeto da solidão dos oitenta em marcha dos noventa. A peça é linda, mas a idade média das pessoas não ficou a dever para qualquer uma daquelas marchinhas.
Caímos no riso de um verdadeiro desfile de Escola de Samba. Eu, o único que ainda não fora à peça, mas prestes a ir, cantarolei: o velho gagá já deu o que tinha que dar, o velho gagá já deu o que tinha que dar, o velho gagá gagueja no baile do Municipal, quando arranja um broto que parece uma pimenta, o velho se arrebenta e noutro dia passa mal....
JOSÉ DO VALE PINHEIRO FEITOSA
Médico-Escritor Cratense
Autor de "Paracuru"
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Zé do Vale, seja benvindo! Encaminhei convite prá você mesmo postar seus textos. Você recebeu?
Qualquer dúvida se comunique com o Zé Flávio ou comigo:
lcsalatiel@hotmail.com
Zé do vale? Quando você cita "Joaquim", só penso em Joaquim Pinheiro! Meu querido colega e amigo de infância!Vamos convidá-lo para nos contar suas histórias? Seria massa!!!
"Para onde você for eu vou atrás seu rebolado é bom demais". Quem souber a autoria desse verso de letra de música. Mr informe por gentileza.
Postar um comentário