TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
sábado, 1 de setembro de 2007
Enquanto isto em Matozinho...
A BÊNÇÃO !
O velho Félix Cãindo andava mal humorado ultimamente. Sempre fora conhecido em Matozinho pelo sorriso escancarado de quase morder as orelhas e, também, pelas tiradas espirituosas que, como um cheque mate, desarmavam os interlocutores. Nos últimos meses, no entanto, andava com aquela cara de chupa-groselha. Enfurnara-se no Sitio Mangabeira e de lá na arredava mais pé. Os amigos da feira e do Bar Alho deram pela falta e começaram a cogitar as razões do absenteísmo de Félix nas rodinhas mais animadas da cidade. O velho andava meio achacado nos últimos tempos, depois que entrara na idade do condor. Ele mesmo dizia que o coração estava todo amarrado de cordão. Vivia atrás de D. Regina pedindo reza poderosa de soerguer espinhela caída e despombalizamento. Imaginou-se ,pois, que Cãindo caíra doente de alguma maleita, um desfruxo brabo ou uma sapiranga importada do Brejão.
A questão, no entanto, nascera na área administrativa do Mangabeira. Félix tinha um enorme canavial e a moagem para fabricação de rapadura começara já há uns dois meses. O engenho nascera numa época de vacas gordas, naquela em que se amarra cachorro com lingüiça. Há mais de cinco anos passara a dar prejuízo. Rapadura deixou de ser item de consumo do caboclo. Cãindo, no entanto, mesmo no vermelho, se negou a apagar a fornalha do Mangabeira. A moagem sempre foi a época mais feliz da fazenda. O cheiro de mel adocicava o ar. Havia trabalho para todos e, mesmo a diária paga não sendo essas coisas, quando a moenda girava não existia fome em Mangabeira. Menino se aboletava nas caixas de rapadura e no banguê, velho se entornava de garapa, as mulheres se divertiam com o puxa-puxa do alfenim e a batida ensinava lições de morte a Félix. O bom aluno dizia em todas as rodas: eu vou morrer é de pé : como batida ! O dono da fazenda se acostumara àquele bulício do eito e , mesmo sem retorno financeiro, mantinha as moendas rodando como um investimento na sua alegria e felicidade.
A verdadeira causa da capionguice de Cãindo só se veio saber muito tempo depois. Dia após dia, ele começou a encontrar, no meio do canavial, um monte de casca de cana e o bagaço ainda fresco do lado. Teve certeza que alguém estava entrando de madrugada no canavial para chupar as canas do Mangabeira. A implicância do proprietário não se atinha ao valor venal da cana chupada. O velho era mão aberta e, após a moagem, mandava batida, alfenim e rapadura para todos os parentes e aderentes. Doía-lhe o desacato , alguém invadir suas posses sem pedir licença, além do desperdício da sua matéria prima pois, muitas vezes, sem faca, o ladrão torcia a cana na boca para beber um pouco da garapa e depois jogava longe o muito que sobrou. Félix botou o SMI ( Serviço Mangabeirense de Informações) para funcionar mas, mesmo assim, não conseguiu descobrir quem era o predador. Resolveu, então, armar uma cilada para pegar o rato destruidor do seu canavial. Acordou cedinho, por volta das três da madruga, armou-se com um facão rabo-de-galo e ficou amuquecado bem no centro do canavial, fumando um escora-carroça e esperando o desenrolar dos acontecimentos.
Lá pras cinco horas, ouviu, perfeitamente o abre-fecha das canas e um assovio fininho entoando o mulher-rendeira. Manteve-se caladinho no posto e esperou, ainda na penumbra, que o larápio se entretivesse descascando as primeiras canas e degustando os roletes. Esgueirou-se , cuidadosamente, em meio às folhas e aproximou-se como cascavel que desliza pelo chão e depois arma bote. Num átimo saltou em cima do ladrão que estava de cócoras, numa pequena clareira e o agarrou pelo colarinho da camisa. Era um rapazinho de uns dezoito anos. Aproveitou para dar uma surra no afanador de cana alheia, com a folha do facão, sob a trilha sonora de: cabra safado! sem-vergonha! filho de quenga! Muitas lamboradas e facãozadas depois foi que , com o sol quebrando na barra, descobriu que o chupador desavisado de cana tratava-se de um afilhado seu. Até porque o menino , a cada lapada do rabo de galo, gritava suplicante para o padrinho:
--- A bênção padim Cãindo ! A bênção padim Cãindo! A bênção padim Cãindo !
O velho, de facão em punho, não se sensibilizou com a intimidade de afilhado. Só o liberou quando estava já coberto de suor e sem forças. Foi largar o colarinho e o menino pegar o gramear, aos trancos e barrancos , numa correria sem fim, levando o canavial nos peitos. Depois disso o menino ficou trombudo e tomou distância da casa grande da Mangabeira.
Félix guardou sigilo e não comentou com ninguém mais sobre o assunto. O certo é que o chupamento de cana desapareceu e Cãindo pode voltar às rodinhas de fofoca em Matozinho. Semana passada, ele estava conversando no meio da feira com Giba, quando Ludugero, o afilhado da história, caminhou na direção do padrinho. Passou, no entanto com aquela cara de fazer cobrança e não deu sequer um bom dia. Giba estranhou a atitude do afilhado e perguntou a Félix:
--- Este menino, rapaz, é seu afilhado e passa assim de cara amarrada e nem pede a bênção ao padrinho ? Pode uma coisa dessas ?
Cãindo , então, não titubeou e arrancou, do fundo da alma, aquela ironia sutil :
--- Carece não Giba ! Mês passado eu peguei ele roubando minhas canas e o menino tem até um saldo bom : ele tomou a bênção por pelo menos uns dois anos !
J. Flávio Vieira
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2 comentários:
Ah! essa aqui foi aquela que o Vicelmo leu meio que cambaleando ontem à tarde... mas em Matozinho acontece mais coisas que aqui no crato. Tem coisas que "só em matozinho mesmo..."
Um abração...
Ontem, na madruga, ouvi, através do Blog do Crato, essa "crônica" na voz de Vicelmo. Impagável!
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