Esqueça-se do açúcar se dissolvendo na água. No Cantinho das Concertinas existem cristais que permanecem no leito do tempo. Brilhando com o sol e embelezando a vida da perplexidade urbana. Há alguns anos, na rua 16, loja 11, da CADEG, no Rio de Janeiro, houve um afloramento de gentes, súbito, sólido e brilhante. Aos sábados os brasileiros natos e os portugueses intercontinentais vivem um folguedo seminal.
Qualquer nordestino encontra sua raiz; os mineiros seus hábitos; paulistanos cosmopolitas, uma identidade; o gaúcho, tão fronteiriço, o seu interior. Os brasileiros compreendem a si mesmo. E por isso formam 70% dos freqüentadores do Cantinho das Concertinas no velho mercado da CADEG. Em Benfica, quase São Cristóvão, um mercado que na sua sigla ainda tem o nome de Estado da Guanabara.
E não começou como um empreendimento de arquitetura do consumo. Com folders coloridos, seus marqueteiros buscando conceitos, o dinheiro solto da divulgação. No final um mito falso como o plástico para que desejos programados resultem em vida consumida. O que é isso companheiro? Não foi assim.
O mundo não é só vaqueiro tangendo boi: "na boiada já fui boi, mas um dia me montei...", já de muito disse Geraldo Vandré. Oh! Pá! não chores por tuas 39 casas de cultura portuguesa que hoje menos atraem gente. Quando teus líderes se aburguesaram no hábito fechado de almoçar com a família sem que caiba os demais, no Cantinho das Concertinas, renasceu o espírito de Portugal in natura.
Com um boné bem português, o expansivo Carlinhos, dono do boteco se esparrama entre as centenas de mesas em pura casa portuguesa. Um cálice de bagaceira, uma cerveja bem gelada e um bolinho de bacalhau de se comer de joelhos com graças aos céus por tamanha ventura. Postas de bacalhau na brasa, um prato de batatas inglesas cozidas ao lado de uma farofa do molho de carnes assadas. Febra, um fino corte de carne de porco assada na grelha, sardinhas na brasa, frangos grelhados e mais ainda há. Afinal se trata de uma rua de um mercado, ou seja, o espaço entre galpões. Então.
Numa barraca se vendem pães típicos. Broas de milhos mais queimadas ou claras e o fantástico Fulá. Um pão grande, com a capa lisa igual aos sovados, todo ele entremeado em seu interior por pedaços de lingüiças bem portuguesas com certeza. A fabricante me disse que existem dois: um que leva ovo e outro só com azeite. As broas não são precisas em seu peso, podem ser maior ou menor, mas o preço é o mesmo. A artesã não tem como controlar os tempos de calor do forno e da massa enquanto pesa a porção justa.
Na vizinhança, entre tantas mesas do mais genuíno botequim, de ferro com as marcas das cervejas, uma outra barraca só de embutidos. Alheira, uma lingüiça cujo recheio se faz com bastante alho, condimentos, carnes e massa de pão. Tem chouriço, um embutido com sangue, a lingüiça portuguesa, carnes defumadas, pedaços de língua, até que teus desejos se satisfaçam. Na entrada da rua uma barraca só com doces portugueses, para se degustar na hora ou levar para as saudades do dia seguinte. Doces conventuais, doces amarelos e muito doces, gemas e gemas de ovos, massas folheadas, amêndoas, toucinho do céu, pastel de Santa Clara, pastelzinho de Belém, ovos moles de Aveiros. No espírito: Aveiros é uma praia do Concelho das Albufeira cujo nome estranho se origina da palavra árabe, "Al-buhera" que significa Castelo do Mar. O mar: sempre ele e Portugal.
Enquanto a fartura alimentar nos põe no mundo do aqui e agora, os músicos de Concertina nós elevam na eternidade e no infinito. E tudo isso começou com um almoço, aos sábados, de velhos amigos: Carlinhos, Zé da Feira, Fifa, Toninho Tintureiro e Hilário Caridade. Um amigo chama outro, outro mais alguém, alguém chama quem alardeia e todo mundo fica sabendo. Uma repórter da Rede Globo noticiou no Jornal Nacional. A partir daí as paredes do botequim encheram-se de fotografias da festa. Roberto Canázio da Super Radio Tupi, no meio dos empregados da casa, entre o balcão e a contígua cozinha, declara, com um copo pela metade de um líquido que passarinho não bebe, não falta um sábado. Descende de Italianos, mas a alma da humanidade fez paradas todas as manhãs destes finais de semana inglesa.
Castanholas, concertinas, violas e violões, cavaquinho, um bumbo marcando o compasso e triângulos. São tantos os músicos: na concertina José Bigorrilho e Hilário Cardinal, Domingos da Conceição e Carminha nas Castanholas, Jorge no Cavaquinho. Mas os dançarinos formam o arco de todas as idades e dos gêneros. Portuguesas em pares, velhos e uma jovem linda de derreter como nas emoções; uma mulata, alta, flutuando sobre os saltos da sandália, um corpo esguio, um quadril de desejos e um porte de catedral. Angela Davis da Band, numa cadência fora da cadência dos demais.
O velho Bandeira, ah!, o velho Bandeira é o ícone da festa. Dança com todas as mulheres, de preferência traz a lindas "cachopas" brasileiras para o cerne da questão portuguesa. Seu Bandeira, é o pavilhão da vida, agita o corpo da dança não só com seu par, mas em todas as mentes ali presentes. E diz ele: aproveita enquanto vida tem, depois, oh....e completa com a mão aberta fazendo um movimento de trás para frente, por baixo do queixo.
E cá do meu cantinho, fui em busca das Concertinas.
* Concertina – instrumento de sopro manual. Da família dos acordeons compostos por teclado, fole e lingüetas de metais sonantes formando uma escala. Constituem-se em órgãos reduzidos.
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Amei!
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