Ao se dizer que isso é normal, tantas coisas positivas para nós, eis feliz notícia. O trânsito flui normalmente, que bom, só com uma hora de atraso. O burocrata diz que teu processo está normal, nas regras, a esperança: aprovado no século que vem, felicidade para os ossos se não é que já fui cremado. Temporal de raios ameaçadores sobre tua cabeça, raios para penetrar fundo na tua mente inerte, mas o guia diz, isso é normal por aqui. Pronto, somos melhor que os pára-raios. O médico, de olhar agoniado, consultas já dadas e outras tantas para dar aos Planos de Saúde, olha teu exame e diz: está normal. Pegas a porta da rua distribuindo saúde. O filho fumou baseado, a noite numa festa rave, quebrou o retrovisor do teu carro, o vizinho ao amanhecer, comenta: é normal. Pronto, sentença de absolvição.
São exemplos da idéia de normalidade. Jeconias costumava nos repreender no banco da pracinha de Paracuru: eu acho esta tal de normalidade parecida com pílulas para consciência. Ninguém entedia, mas Jeconias há muito que não embarcava na pesca de jangada e agora virara pensador. Estudara com Dona Dinah, fora aluno aplicado, tinha leitura solta e gostava de se apegar a um livro. Dizem que até na pescaria levara livros embrulhados em sacos de plástico. Quando alguém perguntava a Jeconias o que queria dizer ele respondia: é que normal virou sinônimo de verdade. Foi normal é verdade e pronto. Ora se sabe que normalidade pode não ser exatamente a tradução da verdade, mas é parte importante dela. Depois que os aparelhos passaram a medir a realidade, ao se dizer que você ou alguma coisa está normal, isso é a verdade daquela coisa ou pessoa.
O governo baixou medida provisória, vem a paz na consciência ferida: isso é normal. Congressistas e uma grana preta para umas ONGs que lhe dão voto: deputado e senador fazer isso é normal. Eleições, telhas para cobrir um puxado, tijolos para subir um quarto, trocados para comprar a roupa nova para ir votar e logo a verdade: isso é normal. O lucro do Bradesco arrebenta a boca da botija e o economista: isso é normal. Ontem à noite me tornei revolucionário. A normalidade já não me atende mais. Não é uma sentença final. É apenas um pedaço da discussão e da minha consciência. Devo isso a Jeconias.
Estávamos naquela sorveteria da esquina da Praça, onde os intelectuais e políticos de Paracuru se reúnem. Dr. Júlio César Alcântara, nome de Imperador e estilo de um Bocage, instigou Jeconias: há há há Jeconias teu sorvete derrete, isso é normal? Jeconias na lata: pois não é doutor. O calor derrete o gelo. Quando o senhor se formou em médico contava com os sentido para comprovar a hipótese de doença que o senhor tinha. Hoje tudo é feito por uma terceira coisa, muito maior e mais diferente dos sentidos do senhor. É o tal de exame, a tal de tecnologia da medicina. Agora não basta o sinal e o sintoma. Agora é tudo nas matemáticas. Por isso é que foi preciso botar estes aparelhos para examinar um bocado de gente e fazer uma lista das medidas de cada um. Aí vem a tal de estatística e tome a usar seu vocabulário. Pois normal hoje em dia é como um jogo de dados, qual a minha chance de dar um seis. A medicina de hoje em dia é a tal de probabilidade. Quando se diz que alguém está com o exame normal, é que naquela medida ela é igual a maior parte das pessoas. É só isso. Nada com toda a verdade e nem somente com a realidade.
Um comentário:
Zé do Vale,
Porque não pensar num livro com todas essas suas crônicas e reflexões sobre a vida? Só como curiosidade, com a venda, Zé Flávio já conseguiu pagar a edição do livro ( "Matozinhos vai..."). Pense a respeito!
U&m grande abraço
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