TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 7 de março de 2008

Romaria

Vinham para Bertioga ajuntados incomodamente em Paus-de-Arara, como reses para o abate. No olhar, aquele perceptível ar de resignação embotado por um brilho profundo de uma esperança concreta, pungente e palpável. Almas jogadas às intempéries terrestres, sugadas pela fome e pelo tempo, liofilizadas pelo sol , pela exploração e pelo esquecimento da selva humana. Esmagadas pela crueza da realidade à volta , apegam-se a possibilidade final de imanência: Nossa Senhora dos Desafogados de Bertioga ! Espíritos genuflexos à espera do milagre derradeiro, da redenção plena num outro mundo mais solidário e menos desigual. Descem das carrocerias aturdidos, agarrados a seus rosários como se se apegassem ao timão de uma nau ébria e titubeante. Barracas ao redor vendem um sem número de quinquilharias, sacralizadas às pressas, bentas por um onipresente Deus Mercúrio. Promessas se liquefazem e escorrem pelas calçadas da igreja, pelas ruas imundas, pelas escadarias, pelos cruzeiros, pelas palavras de fogo jogadas boca afora pela língua dos eternos vendilhões do templo. Por todo lado, uma bocarra ávida solve os pobres níqueis untados de sangue, lágrimas e suor e vomita em troca, como uma louca Pitonisa, profecias vãs , verdes e gloriosas no miserável e árido coração de tantos devotos. Ex-votos, postados de forma aleatória na sacristia, perfazem um quadro dantesco, como espólios últimos de uma guerra fratricida ou de um ritual canibalesco, quem sabe o registro terrível de um novo e interminável Holocausto. Óbulos diversificados : moedas, notas, animais, legumes, objetos metálicos repousam aos pés dos santos lembrando dádivas pagãs oferecidas, numa rediviva Festa Primaveril, a um novo Bezerro de Ouro. Oferendas tombadas ao chão lembrando que a crença alimenta-se do eterno sacrifício humano. Terços dedilhados desordenadamente, mistério a mistério, conta a conta, somam uma outra conta perfeitamente enigmática no ábaco da vida. O balbucio das preces tangidas maquinalmente de lábios rachados -- como se se mimetizassem com a terra um pouco abaixo-- preenche o mundo como um mantra : uma espécie de trilha sonora para uma tragédia estrategicamente preparada nos seus mínimos detalhes. Chapéus de palha ruflarão, freneticamente, na vã esperança de fazer soprar ventos de renovação, vendavais com capacidade de revolver definitivamente as arcaicas estruturas do planeta. Em vão.
As ruas, os templos, os santos, os vendilhões permanecerão exatamente os mesmos, imutáveis e fixos como soldados de Pompéia. Ao derredor, apenas os mesmos romeiros, numa procissão infinita, em moto-contínuo, continuarão piedosamente a trilhar os mesmos caminhos .Tangidos pela esperança, ébrios de fé , caminharão em círculos, sem ao menos perceber que seu destino único é o de vagar pelo deserto em busca de uma terra tantas vezes prometida e outras tantas igualmente negada.

J. Flávio Vieira

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