Recebi de um amigo e-mail no qual o seu irmão, que mora no Rio de Janeiro, se queixava que a epidemia de dengue estava criando um biombo para a marginalidade que controla partes importantes da cidade. Na verdade o morador apenas associava um problema ao outro, mesmo que pelo paradoxo do biombo. Mas acontece que tudo é a mesma coisa: o molambo.
É no molambo em se tornou a sociedade inconclusa do Brasil. Molambo são as habitações daqueles que se agarram nas cidades como à beira de um riacho de lama. O mesmo se diz da renda de parte importante das famílias. Igual são molambos as políticas públicas, safadas, dissimuladas, clientelistas. Aí a falta de saneamento, de retirada do lixo e da oferta de água limpa.
As autoridades sanitárias do país são um molambo da União aos Municípios. Fazem de contam, assentadas sobre um simulacro de burocracia e de parcos recursos, assim mesmo desperdiçados com tigela em que tantos comem o pouco de comida que lá existe. As instituições de ciência e tecnologia são um molambo de seda, pousam de bem sucedidos consultores de negócios e soluções, mas não trazem nada de novo para esta realidade que brilha como um caco de vidro a luz do sol.
A sociedade em geral está perplexa com a realidade que soma tudo: marginais, cólera, diarréias, dengue, febre amarela, balas perdidas, fome, morte antes do tempo. Pois são molambos os pensadores em amplo sentido (a Igreja que se esconde no biombo do divino, os intelectuais que trocam floretes nos salões acadêmicos), os líderes (os marginais que profissionalizaram a representação política, os temerosos das mudanças, os sem qualquer senso da realidade) e as instituições de justiça (as quais parecem balcões de transação penal entre favorecidos).
Então, meu caro irmão do meu amigo. Esta cadeia insana da verdade que se esconde e reaparece em cada fevereiro, assim como o desfile das escolas de samba com lantejoulas e paetês. O dengue não é o biombo da marginalidade nos morros, todos os dois e mais outras grandes misérias como o trânsito, as doenças sexuais e o enriquecimento desenfreado fazem parte do mesmo denominador: a forma de sociedade que se conserva num vidro de picles.
A fórmula pública das autoridades de saúde até tem um script montando há décadas: nada fazem (ou quase) para que o desastre efetivamente aconteça com data marcada; num passo seguinte deixam que o surto surja pois nada existe controlando a cadeia de serviços de saúde; então o surto aparece, matando, levando ao sofrimento atroz; as autoridades aparecem como no dia trinta e um de janeiro nas areais de Copacabana, com fogos de artifícios que se vê desde a estação espacial. Mais um mês as autoridades serão salvas: os suscetíveis à doença já foram todos contaminados e o surto emudece até a próxima geração de vítimas (é breve pois são vários os tipos de vírus da dengue).
Diz o historiador Eric Hobsbawm, mais ou menos assim: as decisões das lideranças de um povo a certo momento transformaram o destino de sua civilização. A geração dos velhos sanitaristas que controlaram o Anopheles Gambiae e o próprio Aedes Aegypti são a prova viva da inapetência daqueles que representam algum papel nos tempos hodiernos. Meus velhos companheiros que já passaram na aridez da administração pública sabem o que estou dizendo. Espero que não se acomodem nos molambos dos lençóis que a vida regrada e já paga lhes deu, enquanto seus filhos e netos se envergonham da vida que eles mesmos levam. A estes velhos digo: chega! Chega de imagens e propagandas, chega de pirotecnia, é chegada a hora da persistência, até mesmo do anonimato, para que os novos possam se usufruir daquilo que inevitavelmente a vida nos ensinou.
Um comentário:
Foi boa!
Lendo o seu texto, eu reforço ainda mais a imagem que o Rio é o protótipo da decadência brasileira.
A própria sociedade é responsável por tudo: se existe o tráfico organizado é porque grande parte da sociedade, de forma organizada, consume drogas; se existem falcatruas de todas as formas, na política e na sociedade, é porque a sociedade é permissiva, tolera porque participa. o quadro traçado por você não é o quadro do Brasil, mas sim de grande parte do povo brasileiro.
Grande texto!
Postar um comentário