Visitas da irmã gêmea
Quando me cortaram o cordão umbilical assim que eu nasci, ela veio. Na falta da parteira que sempre assistia minha mãe, a aprendiz cometeu um erro ao dar o nó e eu sangrei até molhar a ponta da fita, estirada sobre meu peito que, ao invés de me enfeitar o pescoço num belo laço, se desfizera, vítima também de um nó mal atado. Avisada, aquela que de costume aparava os bebês da família, chegou, estancou-me o sangue e apertou os nós.
Aos oito meses, quando tomei veneno, ela veio. Minha mãe, em lugar do remédio que meu avô fora encarregado de adquirir na capital, deu-me o veneno que o pai comprara para acabar de vez com os roedores dos preciosos torrões de açúcar do seu armazém e deixara os dois – remédio e veneno – num mesmo pacote em cima da cristaleira da sala de jantar. O bom médico da cidadezinha me fez tomar o antídoto correto.
Desde então temos nos encontrado na rua, ela em uma calçada, eu em outra. Chegamos a nos cruzar nas esquinas e de vez em quando me parece sentir-lhe a presença na fila de cadeiras logo atrás da minha, em cinemas e teatros. Não tenho lembranças de suas feições debruçadas sobre mim, devido a pouca idade – na época – mas identifico bem seu cheiro. Um forte aroma floral misturado ao odor de cera que a chama da vela exala, quando um sopro lhe apaga e um delicado fio de fumaça se contorce no ar feito uma serpente naja enfeitiçada pelo encantador. Não chega a ser desagradável esse perfume, também não afirmaria o contrário. O mais próximo da verdade seria dizer que ele é estranho porque único.
Faz alguns anos, eu não estava presente, ela veio. Ao partir, levou minha mãe. Lembro que minha mãe, por um bom tempo, parecia ansiar por essa visita, clamava a céus e terra para que viesse, aparecesse, desse enfim o ar de sua graça. Depois, cansada, resignou-se e parou de invocá-la. Minha mãe não tinha nada escrito na mente quando a acompanhou; uma borracha havia lhe friccionado – durante anos – o cérebro, tornando-o alvo, bem mais alvo que o branco dos cachos dos cabelos a rarear em sua cabeça nua de pensamentos. Minha mãe nunca soube dessa visita e muito menos que foi embora com ela.
Agora, pelos olhares que trocamos quando nos cruzamos nas esquinas, ou nos avistamos em calçadas opostas, tento fazê-la perceber que, ao se decidir me visitar, faça-o enquanto eu ainda estiver em casa e possa recebê-la, possa também ao sair em sua companhia, passar às pessoas à minha porta, a impressão de que somos apenas duas distintas senhoras de meia-idade que, de braços dados, se encaminham – pausadamente – ao passeio, em pleno entardecer.
Eu espero.
Quando me cortaram o cordão umbilical assim que eu nasci, ela veio. Na falta da parteira que sempre assistia minha mãe, a aprendiz cometeu um erro ao dar o nó e eu sangrei até molhar a ponta da fita, estirada sobre meu peito que, ao invés de me enfeitar o pescoço num belo laço, se desfizera, vítima também de um nó mal atado. Avisada, aquela que de costume aparava os bebês da família, chegou, estancou-me o sangue e apertou os nós.
Aos oito meses, quando tomei veneno, ela veio. Minha mãe, em lugar do remédio que meu avô fora encarregado de adquirir na capital, deu-me o veneno que o pai comprara para acabar de vez com os roedores dos preciosos torrões de açúcar do seu armazém e deixara os dois – remédio e veneno – num mesmo pacote em cima da cristaleira da sala de jantar. O bom médico da cidadezinha me fez tomar o antídoto correto.
Desde então temos nos encontrado na rua, ela em uma calçada, eu em outra. Chegamos a nos cruzar nas esquinas e de vez em quando me parece sentir-lhe a presença na fila de cadeiras logo atrás da minha, em cinemas e teatros. Não tenho lembranças de suas feições debruçadas sobre mim, devido a pouca idade – na época – mas identifico bem seu cheiro. Um forte aroma floral misturado ao odor de cera que a chama da vela exala, quando um sopro lhe apaga e um delicado fio de fumaça se contorce no ar feito uma serpente naja enfeitiçada pelo encantador. Não chega a ser desagradável esse perfume, também não afirmaria o contrário. O mais próximo da verdade seria dizer que ele é estranho porque único.
Faz alguns anos, eu não estava presente, ela veio. Ao partir, levou minha mãe. Lembro que minha mãe, por um bom tempo, parecia ansiar por essa visita, clamava a céus e terra para que viesse, aparecesse, desse enfim o ar de sua graça. Depois, cansada, resignou-se e parou de invocá-la. Minha mãe não tinha nada escrito na mente quando a acompanhou; uma borracha havia lhe friccionado – durante anos – o cérebro, tornando-o alvo, bem mais alvo que o branco dos cachos dos cabelos a rarear em sua cabeça nua de pensamentos. Minha mãe nunca soube dessa visita e muito menos que foi embora com ela.
Agora, pelos olhares que trocamos quando nos cruzamos nas esquinas, ou nos avistamos em calçadas opostas, tento fazê-la perceber que, ao se decidir me visitar, faça-o enquanto eu ainda estiver em casa e possa recebê-la, possa também ao sair em sua companhia, passar às pessoas à minha porta, a impressão de que somos apenas duas distintas senhoras de meia-idade que, de braços dados, se encaminham – pausadamente – ao passeio, em pleno entardecer.
Eu espero.
Capa de herói
A moça, minha filha, a que se chama Júlia, entra na sala de jantar banhada na luz de todos os encantamentos, ri o riso dos confiantes, beija a ponta dos dedos da mão esquerda, sopra-me o beijo, certifica-se se eu percebi que ele veio do mesmo lado do coração e, num gesto de meio rodopio, joga de leve a juventude sobre os ombros.
Eu observara o deslizamento macio daquela capa de herói a protegê-la do olho gordo do tempo, ouvira o trinado de pássaro ferreiro do portão quando se abrira à sua passagem.
Levantei-me da cadeira às pressas para comprovar se todas as portas estavam bem fechadas; e bati os quatro cantos da casa à procura de um remédio, qualquer ungüento que derramado sobre o meu corpo me caísse até os pés. Um manto de lã de ovelha a me camuflar a velhice. Cobrir-me. E só por aquela noite não sentir frio.
A moça, minha filha, a que se chama Júlia, entra na sala de jantar banhada na luz de todos os encantamentos, ri o riso dos confiantes, beija a ponta dos dedos da mão esquerda, sopra-me o beijo, certifica-se se eu percebi que ele veio do mesmo lado do coração e, num gesto de meio rodopio, joga de leve a juventude sobre os ombros.
Eu observara o deslizamento macio daquela capa de herói a protegê-la do olho gordo do tempo, ouvira o trinado de pássaro ferreiro do portão quando se abrira à sua passagem.
Levantei-me da cadeira às pressas para comprovar se todas as portas estavam bem fechadas; e bati os quatro cantos da casa à procura de um remédio, qualquer ungüento que derramado sobre o meu corpo me caísse até os pés. Um manto de lã de ovelha a me camuflar a velhice. Cobrir-me. E só por aquela noite não sentir frio.
Rejane Gonçalves é amiga minha desde os tempos de Recife e por ela e seus contos tenho um carinho e uma admiração tão grandes quanto a sua timidez.
Um comentário:
REJANE ARRASA !
NÃO CONHEÇO NENHUMA FIGURA FEMININA , DO MEU TEMPO , QUE SE COMPARE AO TALENTO DAQUELA MOÇA.
É MUITO BOM TÊ-LA DE VOLTA...
GRACIAS , MEU AMIGO QUERIDO !
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