TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Crônicas do Sitio Rosto e Adjacências



Dia de Finados
O Bruxo do Sítio Rosto




Oano era 1968, e eu não entendia muita coisa do que se passava na política do país. Tanta era a propaganda governamental que acabei achando que era assim mesmo: “ninguém segura este país”, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “esse é um país que vai pra frente”. Aliás, fui o orador da turma que se diplomava no ginasial, no Ginásio Pedro Felício Cavalcanti, que naquele tempo era pago. Só pude cursá-lo graças a um dos maiores beneméritos do Crato e do Ceará, o grande Dr. Humberto Macário de Brito que, num laivo de crença e entusiasmo,após uma cruciante sabatina, me concedeu uma bolsa de estudo para quatro anos, tempo de integralização do curso ginasial. Hoje e sempre não terei dúvidas de que o Dr. Humberto foi seguramente um dos responsáveis pela minha formação acadêmica.
Pois bem, ainda hoje, o meu eterno prof. Eli Menezes, lembra com aguçada gozação, daquele meu arroubo juvenil, ao proclamar para um auditório lotado de muitas autoridades, logo na abertura da minha peroração, a frase que lida hoje, representa a mais digna empulhação do regime militar: Ninguém segura este país !
Minha alienação era confrontada pelo viés político e bem dosado do eminente prof. Felix, uma sumidade no Português, na Literatura, nas artes, principalmente na música e nos jograis. Nesta mesma noite da colação de grau, ele dirigiu um jogral cuja peça havia sido censurada internamente. O autor da peça, ou da poesia era Manuel Bandeira, e a poesia era “O Bicho”, do livro Belo Belo, do príncipe dos poetas brasileiros.
- Não, essa temática é muito forte, não pode ser dita por enquanto...”- cautelosamente prevenia a minha querida diretora, a elegante profa. Elsa Ramos.
O prof. Felix, então, nos levou uma outra peça para ser recitada pelo jogral. De sua criatividade, ele nos fez recitar de um a cem, onde cada membro do jogral encenava num palavreado ora “a basso”, ora “alegro”, ora “alegro ma non tropo”, ora “vivace” cada seqüência de cinco números. Exemplo:
Eu começava: um, dois, três, quatro, cinco, dando um tom a esta seqüência. Em seguida, uma colega falava: seis, sete, oito, nove, dez, já com outro movimento e entonação. E assim por diante... Assim fomos recitando números até completar o número cem. Fomos aplaudidos de pé ! Gênio, nosso professor, o barbalhense Edmilson Felix.
Mas estou contando tudo isto como que para amenizar o sofrimento de falar dos mortos, de finados. Aliás, esta palavra finado é incrível. Vocês já pararam para pensar no seu campo semântico ? Esta é uma outra história que gostaria de um dia palestrar sobre.
Mas, Manuel Bandeira, o grande vate pernambucano, desconstrói um pouco do que esta comemoração pontificou na nossa memória cultural, e aí é onde eu enfio na sua cachola o meu pé atrás com a palavra “finados”. Leiam só que ele disse no seu consagrado livro Libertinagem:

Poema de finados

Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.

(O Bruxo Do Sítio Rosto)

3 comentários:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

O bruxo entre a prosa e a poesia de Bandeira. Na poesia reconhece a poética da comemoração do morto em vida para o morto como necessidade simbólica (do mundo/vida), mas na prosa, honestamente, retribui a lição da sua antiga diretora e nos delicia com a vida de uma prosa otimista.

Carlos Rafael Dias disse...

Esse tal de Bruxo do Sítio Rosto tava desaparecido, mas bastou chegar o dia do "reluim" que ele emergiu das trevas onde se escondia e botou o seu caldeirão no fogo. Ali misturou suas porções mágicas para cozer o caldo da cultura e apurar, na fervura da memória, uma bela crônica citadina. Melhor: deixou várias pistas ao citar personagens reais, de carne-e-osso sob a tessitura polida de homens de bem. Uma simples investigaçãozinha nos revelará quem é esse misterioso mago dessas belas crônicas.

Armando Rafael disse...

Caro Bruxo do Sítio Rosto,
“Só os espíritos bem formados são capazes de cultivar a gratidão”. (Sêneca)

Mais do que a bonita poesia de Manoel Bandeira gostei muito foi do seu sentimento de gratidão a Dr.Humberto Macário de Brito.Isso é nobreza!
É gratificante saber que este mundo não é feito só de ingratos...
Aliás, conheço a personalidade de uma pessoa pelo grau de gratidão que ela cultiva. Há três categorias de homens mal-agradecidos: os que calam os favores recebidos; os que os cobram e os que se vingam. Os piores são os da última categoria, como ocorre com alguns safardanas da nossa região. São mal-agradecidos cujas famílias foram beneficiadas nos governos dos coronéis (principalmente na administração do Cel.Adauto Bezerra) e hoje – travestidos de bajuladores do governo do PT – atiram pedras em quem os ajudou no passado. Esqueceram dos empregos obtidos (muitas vezes sem qualificação) nas repartições estaduais e da utilização dos “pistolões” para obterem transferências, promoções e vantagens outras...

Verdade que a gratidão é a mais difícil e rara das virtudes. Aliás, dizia Esopo, que “A gratidão é a virtude das almas nobres”.
Esses ingratos foram muito bem retratados na poesia de Augusto dos Anjos:


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!