Depois que a encorpada paciente por fim deixou o consultório, Dr. Túlio acordou para o problema que agora tinha às mãos. Faltavam ainda uns dois meses para o Natal, morava num apartamento confortável e amplo, mas num apartamento ! Não tinha chácaras. Onde diabos iria hospedar aquele bípede por tanto tempo ? Colocou-o na mala do carro e partiu para casa, após o expediente. Ao chegar, já levou uma bronca da mulher pela aquisição de um novo e incômodo hóspede. “Vai melar tudo, não tem lugar para botar este bicho aqui, é melhor dar para o vigia”.Dr. Túlio, pacientemente, explicou à esposa o esforço da senhora para trazer o presente , não parecia justo e cristão livrar-se da lembrança. Finalmente acordaram que o peru ficaria amarrado na área de serviço , esperando para nutrir a ceia de natal dos Montenegro. O bicho acomodou-se por lá. Manteve aquele ar meio passivo, aquele olhar vívido e atravessado e só soltava sua salva de gluglus quando a filha menor de Dr. Túlio, punha-se a incentivar a ave com assovios.A menina, aos poucos foi se afeiçoando ao peru. Sua cachorrinha poodle, Filó, com o passar dos dias, criou uma amizade estreita com o bicho, a tal ponto que só dormia com a cabeça recostada nas suas asas. O afeto da criança terminou por contagiar a babá , a cozinheira e, por fim, a mãe que descobriu a importância da amizade natural que brotou dentro de sua casa e que de alguma maneira contagiou a todos.
Semana antes do Natal, Dr. Túlio Montenegro lembrou-se de um outro desafio. Diferentemente dos perus da Sadia, era preciso matar aquele animal enorme, de véspera. Quem diabos sabia mais fazer isto ? Depois do galeto congelado, do chester temperado, todo mundo desaprendera o ritual macabro : embebedar o peru com aguardente, sangrá-lo friamente , quando já estivesse grogue, pôr na água fervente, despelar e tirar os canhões... Desesperou-se quando descobriu que já não existiam, nesta geração, carrascos de peru! Alguém no hospital informou de uma atendente de enfermagem que era metida em magia negra e que possivelmente ainda devia manter a frieza necessária para tamanho assassinato. Procurou-a e combinou com ela, quase que clandestinamente, como se premeditasse um crime, a possibilidade de realizar este trabalho sujo. Um pouco a contragosto a empreita foi acertada.
Véspera de Natal, a calamidade! Dirigiu-se à área e pediu à cozinheira que colocasse o peru na caixa pois ia levá-lo ao sacrifício. Aí veio a avalanche: a filha começou a chorar e a gritar, a cozinheira e a babá , emburradas adiantaram que não preparariam o peru abatido e a esposa, berrando , avisou logo que se ele inventasse de matar o bichinho, simplesmente não haveria clima nenhum para se fazer a ceia de natal.Até Filó latia sem parar como se acuasse tatu. Dr. Túlio, diante de tantos advogados peruanos, não teve outro jeito, senão recuar. No outro dia, iluminou-se com a certeza de que nunca tinham feito uma ceia mais imersa no espírito natalino. Na área o peru e Filó como que reconstituíam a majestosa cena da manjedoura . Aos amigos e colegas que a partir daí, cientes da história, o perguntavam quando ia matar o peru, ele respondia com o sorriso que havia roubado daquela humilde senhora do interior :
--- O peru, meus amigos, vai morrer de velho, agora ele já é Montenegro !
J. Flávio Vieira
5 comentários:
Zé Flávio,
leio tuas estórias
sempre com um riso desabrochando
no canto dos lábios a deliciar-me
com cada imagem, repente, retórica que escapam dos personagens
como também do autor (às vezes é necessário separar as criaturas do criador para que se compreenda a elevação de quem escreve).
Tu escreves, diria, sem labuta -
embora tua escrita seja bem trabalhada.
Ora, não é preciso enjoos, rabugice, sisudez para lapidar a obra.
Tal aparente simplicidade
cabe somente aos grandes.
Decerto é um cansaço bacana.
Zé Flávio, tu és um grande contador de estórias.
Admiráveis abraços.
Abraço ao grande Domingos e fico feliz que mais uma vez tenha apreciado o texto. A história é real, acontecida com um antigo professor meu em Recife, apenas pus um pouco de tempero e molho.
Feliz Natasl para você, poeta !
Exatamente, Domingos,
Eu fico atônito com as loucuras que o Zé Pensa, porque eu penso às vezes da mesma forma, mas não conto pra ninguém, senão iriam me chamar de louco. E ele diz assim de uma maneira despudorada e sincera, com a facilidade com que uma pessoa conversa.
Estou rindo até agora, por exemplo, dessa subida do periscópio de dentro da caixa de papelão, ahahahahah - Rapaz, essas pequenas coisas que as pessoas não notam, esse humor incrível, até hoje em vi em poucos, e pessoalmente, só conheço 2 que pensam e falam nessas coisas: Um é o Zé Flávio, e a outra é Ninha, minha namorada, que também tem umas tiradas assim, que fico a imaginar de onde esse povo tira essas idéias que ninguém pensou antes, e que a gente esconde da consciência.
SALVE GRANDE ZÉ FLÁVIO - O Contador de Estórias Maravilhosas!
Abraços a todos.
Feliz Natal, Feliz Ano Novo.
Dihelson Mendonça
Pensando ainda sobre essas pessoas, descobri que parece que o segredo de ver o mundo dessa forma, é pensar como uma criança pensa.
Uma criança consegue olhar para um Peru dentro de uma caixa e ver um Periscópio emergindo na superfície. Ninha também possui essa visão mágica do mundo. É como eu disse em outra postagem: O Zé Flávio possui uma criança linda dentro dele, que é quem fala para nós.
E nós precisamos dessa criança que existe dentro de cada um de nós, só que muitos a abandonaram.
O mundo visto pelos olhos de uma criança não há nada de tão maravilhoso...
Feliz Natal.
DM
Abraço ao grande Dihelson pelas palavras carinhosas e por ser um leitor tão assíduo de tantas potocas. fico feliz quando as pessoas gostam dos textos, acredito que no funo a gente escrever para nós mesmos, mas quando consegue tocar outras pessoas é simplesmente mágico. Penso, como o Dihelson, que os artistas( e são tantos e tantos no Cariri!) conseguem brotar o menino que um dia existiu em cada um de nós e as obras de arte são na verdade um réquiem à criança que um dia fomos.Tento escrever com alguma simplicidade e , com o tempo, como escrevo toda semana, terminamos pro aprender ( existe muito de mecânico no que escrevemos). Fico porém todo serelepe quando me dizem que escrevo fácil ( sei que isso dá um trabalho danado) ou que o meu texto é bom de ler. Fico assim todo fofo e cagando uma goma danada com as palavras do Dihelson e do Domingos. Feliz Natal para vocês.
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