TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

sete palavras

1.
um conselho, leitor de poesia,
não te fies assim no coração
mas prepara-te os dentes, pois é
tempo de chumbo nas palavras,
cada palavra-pedra que se pode
colher nesta cidade com suas linhas
azuis, tetos de ocre e ventania,
fiascos empalhados em sobrados,
mil dores espalhadas pelas sombras,
dias terrivelmente construídos
com influxos de sonhos e gravuras
maiores que teu peito de lirismos

2.
não estou certo, mas creio que a poesia
surgindo das arestas tem um gosto
típico de laranja podre e cheiro
de esgoto misturado com o suor
de todos esses homens que constroem
o dia odiado por mim, inútil
sonhador de presenças sem ferrugem

3.
quero voltar pra casa em silêncio
cansado dos acordos da política
no fundo dos porões, quero mulher
que me faça esquecer ratos com aspectos
angelicais e línguas de navalha
distribuindo engodos como flâmulas,
influências no centro do poder,
busca do verde vivo no papel,
uma por cima da outra, meu amigo
uma por cima da outra, sem moleza

4.
não confie nunca mais no coração
acostumado a versos sobre a lua
hoje é tempo de chuvas, enxurradas
dessas vozes melífluas e gasosas
cantos da casa escura, o barulho
hum! hum! tanto barulho de motores
rompendo sem milagres cada dobra
da noite com camadas de sentido
se esvaindo, mensagens por decifrar

5.
sombra da noite, fúria de mil pés
mil braços sem batalha aguardada
que o coração é um poço de enganos
e quem nele mergulhe parcialmente
seu rosto há de sair um pouco mais velho
desgastado, com voz rouca de quem
saltou do sono e foge do espelho

6.
poemas-guloseimas se repetem,
sabores que as palavras têm depois
de uma taça de vinho, nostalgia
sopro de lábios lívidos no ouvido
poesia sem ter rumo, vastidão
de ruas ensolaradas, gente estrela
cuspindo seus temores sobre as torres

7.
poesia agora é um pouco mais do que
esse açúcar na mesa eviscerada
também é mijo, pinga, pichação
de vitrines, calçadas com rancores,
a coreografia de homens nulos
um monte de palavras perfurando
os ouvidos, os olhos, o real

4 comentários:

Domingos Barroso disse...

Deixo-te então com a contundência das sete palavras.

O silêncio depois delas
ainda mais forte.

E verás, se já não percebes,
que o lirismo poético também
adormece nas cinzas e nos sobejos
das sete palavras.

A Poesia, meu caro,
tem antes que o poeta imagine
o dom da dor e da ilusão, vísceras estraçalhadas e logo assopradas com faces pueris.

Um belíssimo poema.
Um forte abraço.

chagas disse...

Meu poeta, a sua sensibilidade
traz um pouco de luz a essas sete palavras.
Se elas tangenciaram sua alma,
isso traz alegria.
Mas o possível silêncio que vem depois
Sempre é quebrado
pela imaginação calorosa de um poeta como você,
que tem dado provas de sobra
de ter o “dom da palavra”,
o dom da inspiração.

Um abraço mais forte ainda.

Carlos Rafael Dias disse...

Eu já sabia

Desde a primeira letra

o primeiro verso

São letras e versos

De um poeta íntegro

Que diz e afirma

E se for preciso

Fala no silêncio

E nas entrelinhas

E nas estrelinhas

Que aparecem no céu

chagas disse...

Carlos, as tuas palavras e as do Domingos, elas próprias já formam um belo poema.

Abraço.