Chegara naquela idade do gelo em que algumas decisões de suma importância não mais podem ser adiadas : Pintar ou não o cabelo ? Usar o cinto acima ou abaixo da barriga? Turbinar ou não com Viagra? Lentes progressivas , bifocais ou vários óculos? Perereca ou implante? Quebrado o cabo da derradeira esperança, percebeu, claramente, que a contagem dos anos já não se fazia : mais um, mais um... agora, iniciada a contagem regressiva, chamava: menos um, menos um... Os netos já o tomavam a pagode e nas brincadeiras ele é que era o “café-com-leite”. Nas feiras escolhia os alimentos não mais pelo sabor, mas lendo os rótulos cuidadosamente para somar as calorias, ver o teor de açúcar e de sódio, tudo sob orientação médica, como se o rótulo fosse uma bula. Calculou meticulosamente e descobriu que já gastava mais na farmácia do que no supermercado.Por incrível que possa parecer, estas mudanças talvez por não chegarem de chofre, demoraram para fazer cair a ficha. No fundo ainda se sentia aquele garanhão dos quinze anos e não o pangaré grisalho que teimava em refletir-se no espelho. E ostentava a vã certeza de que seu Mercury / 1949 ainda era capaz de ganhar corridas, concorrendo com Ferraris de última geração. Aos poucos, no entanto, passou a perceber sinais de cupins na biblioteca. Uma bursite no ombro direito, a pressão alta, a dificuldade de ler, o tesão meio borocochô. O que estava acontecendo com o menino lépido de outrora?
Nem mesmo uma ameaça de enfarte o tirou do sério. Afinal estes problemas de coronárias podem aparecer em qualquer idade, não é mesmo? Deve ter sido o diabo do cigarro, pensou lá com suas cãs. Um dia, no entanto, um fato corriqueiro lhe fez acordar para a constatação da inexorável marcha do tempo. Perto de casa, viu alguns rapazes se preparando para um rachinha num campo de várzea. Do alto dos seus vinte e poucos anos assumidos, inscreveu-se para a partida, meio a contragosto dos meninos. Acreditou que eles temiam a qualidade reconhecida do craque que pensava que ainda era. Bola vai, bola vem, atacando de ponta direita, quase não recebia nenhum passe. É que havia um meio de campo do seu time que amarrava a pelota e não passava para ninguém, aquele fominha que não entende o futebol como um esporte coletivo. Lá para as tantas, recebendo um passe da defesa, Lírio correu pela lateral do campo e cruzou para o fominha, partindo célere para o ataque. De repente estava livre, sem marcação, diante do gol, esperando o impossível : que o fominha lhe devolvesse a bola! O unha-de-fome se enrolou com a defesa e terminou perdendo a jogada sem nem imaginar em cruzar de volta a redonda. Nisso, o centroavante, furioso gritou:
--- Filho da mãe, fominha de uma figa, passa essa bola, tu não tá vendo o Velho ali solto, solto ?
Lírio olhou para um lado e para o outro procurando o velho citado e não encontrou. Foi quando descobriu o impensável : Era ele ! A partir dali, com a dura verdade pesando-lhe aos pés, não mais rendeu. Terminada a partida, decidiu: jogo agora, só de tabuleiro!
O certo é que a ficha caiu súbito, mas não sem resistência. Lírio aposentara-se de um emprego burocrático na prefeitura. Voltara para casa, mas teve sérios problemas de adaptação. Por várias razões. Primeiro nada entendia de trabalho doméstico e, no intuito de ajudar, começou atrapalhar e muito. Depois , tinha uma relação meramente burocrática com D. Lindalva, a esposa: “Tetos iguais, corações separados”. A proximidade como que diminuiu ainda mais a temperatura da relação e os congelou. Tanto pesou a aposentadoria que o enfarte de Lírio brotou, possivelmente, da inadaptalidade às novas funções. Recuperado, resolveu, então, comprar um carrinho velho e trabalhar como taxista. Não ganhava lá essas coisas, passava a maior parte do dia no ponto, mas de conversa em conversa, de fofoca em fofoca, o restinho de vida ia passando à sua frente com a calma devida, com a anestesia calculada.
Trabalhando com uma velha Brasília 86, Lírio percebeu que aquilo não era um carro, mas quase um casamento civil. Vivia na oficina mais do que na praça. Quando lhe começaram a aparecer os achaques da idade teve a perfeita consciência de que não se diferenciava muito da velha fubica. Como ela, tinha folga na direção, rolamentos gripados, pneus carecas e estava saltando de marcha de quando em vez.
--- Qualquer dia desses, eu ou ela sobramos na curva, ou quem sabe os dois ?
Semana passada, arranjou uma namorada, numa das corridas. Tinha idade de ser filha do Lírio. Levou-a para um motel. Começou como quem come papa: pelas beiradas. Na hora do venha a ver, até que o motor velho reagiu acima do esperado. Estava todo serelepe. Demorou , demorou, mas nada de chegar ao ápice... nada! Suado, pensou com sua samba canção:
--- Meu Deus ! Ia tão bem ! O que terá sido dessa vez ? Será que agora foi o jiqlê do carburador que entupiu ?
Nem mesmo uma ameaça de enfarte o tirou do sério. Afinal estes problemas de coronárias podem aparecer em qualquer idade, não é mesmo? Deve ter sido o diabo do cigarro, pensou lá com suas cãs. Um dia, no entanto, um fato corriqueiro lhe fez acordar para a constatação da inexorável marcha do tempo. Perto de casa, viu alguns rapazes se preparando para um rachinha num campo de várzea. Do alto dos seus vinte e poucos anos assumidos, inscreveu-se para a partida, meio a contragosto dos meninos. Acreditou que eles temiam a qualidade reconhecida do craque que pensava que ainda era. Bola vai, bola vem, atacando de ponta direita, quase não recebia nenhum passe. É que havia um meio de campo do seu time que amarrava a pelota e não passava para ninguém, aquele fominha que não entende o futebol como um esporte coletivo. Lá para as tantas, recebendo um passe da defesa, Lírio correu pela lateral do campo e cruzou para o fominha, partindo célere para o ataque. De repente estava livre, sem marcação, diante do gol, esperando o impossível : que o fominha lhe devolvesse a bola! O unha-de-fome se enrolou com a defesa e terminou perdendo a jogada sem nem imaginar em cruzar de volta a redonda. Nisso, o centroavante, furioso gritou:
--- Filho da mãe, fominha de uma figa, passa essa bola, tu não tá vendo o Velho ali solto, solto ?
Lírio olhou para um lado e para o outro procurando o velho citado e não encontrou. Foi quando descobriu o impensável : Era ele ! A partir dali, com a dura verdade pesando-lhe aos pés, não mais rendeu. Terminada a partida, decidiu: jogo agora, só de tabuleiro!
O certo é que a ficha caiu súbito, mas não sem resistência. Lírio aposentara-se de um emprego burocrático na prefeitura. Voltara para casa, mas teve sérios problemas de adaptação. Por várias razões. Primeiro nada entendia de trabalho doméstico e, no intuito de ajudar, começou atrapalhar e muito. Depois , tinha uma relação meramente burocrática com D. Lindalva, a esposa: “Tetos iguais, corações separados”. A proximidade como que diminuiu ainda mais a temperatura da relação e os congelou. Tanto pesou a aposentadoria que o enfarte de Lírio brotou, possivelmente, da inadaptalidade às novas funções. Recuperado, resolveu, então, comprar um carrinho velho e trabalhar como taxista. Não ganhava lá essas coisas, passava a maior parte do dia no ponto, mas de conversa em conversa, de fofoca em fofoca, o restinho de vida ia passando à sua frente com a calma devida, com a anestesia calculada.
Trabalhando com uma velha Brasília 86, Lírio percebeu que aquilo não era um carro, mas quase um casamento civil. Vivia na oficina mais do que na praça. Quando lhe começaram a aparecer os achaques da idade teve a perfeita consciência de que não se diferenciava muito da velha fubica. Como ela, tinha folga na direção, rolamentos gripados, pneus carecas e estava saltando de marcha de quando em vez.
--- Qualquer dia desses, eu ou ela sobramos na curva, ou quem sabe os dois ?
Semana passada, arranjou uma namorada, numa das corridas. Tinha idade de ser filha do Lírio. Levou-a para um motel. Começou como quem come papa: pelas beiradas. Na hora do venha a ver, até que o motor velho reagiu acima do esperado. Estava todo serelepe. Demorou , demorou, mas nada de chegar ao ápice... nada! Suado, pensou com sua samba canção:
--- Meu Deus ! Ia tão bem ! O que terá sido dessa vez ? Será que agora foi o jiqlê do carburador que entupiu ?
J. Flávio Vieira
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