TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A JURIDICIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL - Um dos aspectos da desconstrução do 'outro' - Por: Reno Feitosa Gondim

Tudo é possível numa sociedade em que a existência do outro enquanto ‘alteridade’ é tomada como uma ‘coisa’ dispensável, e, se possível, uma ‘ausência’, nesse último caso, como se da ‘coisa’ fosse possível purgar-lhe a materialidade e convertê-la em puro ‘objeto-de-desejo’ (uma certa neurose da sociedade contemporânea denunciada pelo Niilismo). Com efeito, a gravidade da questão da ‘alteridade’ aponta para a superação da sua posição iniciática esclarecida pelo Marxismo no século XIX, haja vista que, hodiernamente, não se imiscui apenas nas relações de produção, expandindo-se num movimento também antevisto, das correlações entre infra e superestrutura. Das relações econômicas, a coisificação alcançou as instâncias ideológicas superestruturais clássicas (assim como a acumulação de capital tem pretendido tomar de assalto os céus – anteriormente prometido aos pobres).
Aliás, essa é a tônica das relações sociais que doravante alcançam a instituição tida como fundamento da sociedade: a família.
A redefinição do papel dos membros do núcleo familiar na sociedade atual, como um desdobramento do processo histórico de desconstrução da ‘Família Patrimonialista’, tem gerado um dos mais viscerais elementos de violência contra as crianças e os adolescentes no âmbito intrafamiliar, notadamente pela exposição às mais variadas formas de crueldade e coisificação, que vão da exploração sexual à alienação parental.
Nesse sentido, a ‘alienação parental’ enquanto novidade nos foros judiciais e nos debate jurídico acadêmicos representa o abuso do poder que um dos pais exerce sobre os filhos menores, causando-lhes distúrbios emocionais e mentais pela implantação de falsas representações do outro consorte, podendo este último ser o pai ou a mãe. O pano de fundo sobre o qual se desenvolvem esses espetáculos degradantes de desconstituição do ‘outro’, quotidianamente tem se exibido nos processos judiciais que envolvem a ruptura do casamento ou estado de convivência.
Com efeito, alhures, o núcleo familiar tem se convertido no palco da violência contra os impúberes, lá no impenetrável convívio da intimidade. O mais grave que se tem mostrado nesse contexto e pelos casos concretos, é o desejo indisfarçável de ver as crianças desconstituídas ou ausentes (em sua condição singular). Os maus-tratos emocionais pela alienação, o desprezo pelo processo de constituição da pessoa dignificado na criança e a substituição da ‘educação para a cidadania’ pela ‘educação para o consumo’, conformam a apresentação de um circo de horrores que mais adiante eclodirá na incapacidade de alteridade, isto é, na incapacidade de auto-realização do homem em convivência comunicativa com os outros (essencialmente em sua realidade conflituosa).
A difusão massiva e midiática dos preceitos darwinistas pelo neoliberalismo, o que, ademais, é também uma novidade da sociedade global em seu ‘pensamento único’, tem convertido o ‘outro’ em inimigo, em alguém a ser vencido e subjugado, isso dentro da liberdade mercadológica e sua ‘mão invisível’ (uma expressão eufemista para um produto convertido à ‘teoria da conspiração’).
A negação da ‘condição’ do outro e sua conversão em coisa é uma daquelas forças dialéticas da história capaz de produzir uma sociedade de massa repleta de indivíduos solitários, e de condensar sociologicamente um fenômeno a priori puramente psicológico. Nesse sentido, mais lacaniano que freudiano, eclode a ‘perversão’ como uma instituição social que quotidianamente nos invade midiaticamente e desse mesmo modo, nos despe do humanamente dignificante.
Dentre o leque de possibilidades que o futuro encerra, pode-se admitir a hipótese pela qual esta será a ‘sociedade dos ausentes’ em que os homens buscarão apaixonadamente a realização dos seus desejos pela via da desconstituição do outro e da ausência, e nesse aspecto, na infância de hoje, muitos estão plantando as sementes da coisificação e da indiferença que, pelo esvaziamento da condição humana, desconstituirão o porvir (ou, quiçá, confirmarão a hipótese escatológica do ‘fim da história’).
Todavia, algo permanece autêntico ao se considerar que a consciência bate à porta do homem na ambiência histórica do presente (‘dasein’ do existencialismo), embora as suas possibilidades comecem a se constituir desde o seu nascimento num núcleo familiar (pré-concepções da práxis e sua dialética negativa). A redefinição do papel dos membros do núcleo familiar na sociedade atual, da mulher e do homem, deve ser seguida por uma reflexão personalista e existencial que reconheça nos outros a alteridade contida nas pessoas que realmente existem e se fazem presentes.
Sem embargo, de modo inexorável, e dentro desse turbilhão de desencontros e falsificações, a alienação parental é um signo da decadência na qual a sociedade atual mergulhou e contra a qual se deve reagir, para além de positivas fórmulas engendradas no âmbito do Estado e suas políticas oficiais de controle seletivo da violência institucionalizada.
Resumidamente, o que a reflexão jurídica começa a perceber é que o problema e a sua solução estão além das formulações jurídicas positivistas e positivadas. Quiçá, estejam relacionados com o modo de vida da sociedade de consumo, onde absolutamente tudo é descartável (“Admirável mundo novo!” – diria Huxley, horrorizado.).
Reno Feitosa Gondim
Professor da URCA

Nenhum comentário: