TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Severo e a Guerra Can-Can


Semana passada, Matozinho parou literalmente para acompanhar , pela TV , a guerra contra o tráfico nas favelas cariocas. O súbito interesse pelo assunto tinha sua raízes em razões modernas como o fascínio pela mídia, como em qualquer outro lugar desse mundão de meu deus, mas , também, em outras bem mais profundas e históricas. Por incrível que possa parecer, o Morro do Alemão, a Penha, a Rocinha são fronteiriços a Matozinho. É que a miséria e a desassistência do estado tornam todos viventes muito próximos e parecidos. A pobreza, como a morte, irmana e iguala muitos num estranho socialismo . Claro que a pobreza é produzida para alguns e a morte, muito mais igualitária, reúne todos numa mesma lápide, no mesmo nada, no mesmo esquecimento. Um outro fato a aproximar Matozinho dos cariocas: incontáveis matozenses vivem nas favelas do Rio, no comércio ambulante, como crediaristas. De alguma maneira, pois, a Guerra Civil carioca mexia diretamente com a Vila e sua economia.
As operações militares envolvendo Polícias Militar, Civil, Federal e o Exército, remeteram, também, imediatamente, a Vila a períodos conturbados da sua história. Os mais velhos lembraram rapidamente dos tempos do velho Pedro Cangati, aí pelos idos de 1950. Pedro fora chefe político local e desencadeara uma verdadeira guerra contra uma família de Serrinha , cidade vizinha : os Cangulo. As primeiras desavenças começaram por conta de briga no espaço político da região e acirraram-se ainda mais por contra dos Cangatis e Cangulos serem parentes próximos. A Guerra Cangati-Cangulo ficou conhecida como Can-Can. Hordas de pistoleiros campeavam naquelas brenhas , de lado a lado, e , em menos de dez anos, já se computavam mais de cinqüenta mortes . A vendetta acometia quase que proporcionalmente as duas famílias envolvidas. Com o passar dos anos, a questão se foi arrefecendo uma vez que a cara manutenção dos dois exércitos acabou por derrotar financeira e politicamente os dois contendores.
Pois bem, amigos, começamos pelas beiradas, como quem come mel quente, saído da passadeira. Imaginem a aflição de um destacamento policial, em Matozinho, em plena Guerra do Can-Can . Eram meros cinco soldados , armados de espingardas soca-soca e jardineiras, totalmente despreparados e mal acostumados, postos a enfrentar exércitos de jagunços perigosos e peçonhentos. Entre estes, havia uma folclórica figura , conhecido de todos: Severo. Apesar do nome de soldado espartano, Severo não fazia por merecê-lo. Franzino, magricela, alto, parecia um “Mané-Magro de Jurema”. Salvo ,por pouco ,de uma tísica na adolescência, Severo carregava aquele corpo de mamulengo, meio desengonçado. Sentara praça na polícia por mera falta de opção. Já perto da aposentadoria , dizia-se, a boca miúda e grande, que nosso militar, durante toda sua carreira, jamais prendera ninguém. Evitava enfrentamentos e operações em que tivesse que fazer campana sozinho. Pelo soldo pequeno que recebia, compreendia-se a dificuldade de atos de patriotismo e heroísmo exacerbados.
Quando apelado a exercer suas funções repressivas, Severo dava sempre um jeito de chegar atrasado. No máximo, tentava uma psicoterapia á distância, tentando convencer o bandoleiro a se entregar, a acompanhá-lo, mas sempre mantendo distância regulamentar. Do seu lado, ele usava técnicas de marketing, mostrando aos circunstantes a dificuldade da sua função, informando que se lá fosse e desse uma surra no acusado, a própria sociedade o condenaria, os direitos humanos viriam puxar sua orelha. A conversa se prolongava até que o baderneiro, ou bêbado resolvesse ir embora. Mesmo assim, Severo o acompanhava, sempre à distância, dando ordens de “Teje Preso”, até que o malandro se escafedesse. Depois, o soldado fazia uma relatório informando aos superiores a impossibilidade da prisão, uma vez que ao sentir seu poder de fogo, o desordeiro , com medo, fugira em desabalada carreira.
Matozinho, diante das operações dramáticas, no Morro do Alemão, remeteu-se, diretamente à mais heróica façanha do nosso Severo. No auge da Guerra Can-Can, alguns pistoleiros dos Cangulos, após uma chacina em Bertioga, se acoitaram numa casa estrategicamente construída na subida da Serra da Jurumenha. O lugar era militarmente privilegiado, num alto, com ampla visão em 180 graus de todo o horizonte. A polícia de Matozinho foi chamada para enfrentar os bandoleiros e, ao se aproximar do local, perceberam, claramente, que se tratava de uma tarefa perigosa e dificílima. Os facínoras atiravam sem parar com rifles papo-amarelo. No meio do destacamento estava nosso corajoso Severo que, mais que rapidamente, percebeu a enrascada em que estava metido. Mal chegaram no pé do morro, sob fogo cerrado, viram ser alvejado um pobre agricultor que ali passava, tardizinha, de volta da roça. Como Severo mesmo comentou: “a bala bateu no homem e ele caiu de cu trancado, nem estrebuchou”.
Severo, então, resolveu, num átimo, estabelecer a tática que mais havia treinado durante tantos e tantos anos: a retirada. Aproximou-se , se arrastando, do colega mais próximo , em meio ao ziguezaguear das balas e informou:
--- A coisa tá difícil ! Sustentem o fogo que vou buscar reforço !
Ao anoitecer, ainda sem poder tomar chegada, os soldados viram, por fim, os pistoleiros fugirem sem deixar rastro. Foram escapando , um a um, pelas portas dos fundos. Os que ficavam, continuavam a atirar em diversas janelas, dando a impressão que o batalhão ainda estava todo lá em cima. Por fim, o último escapou e só ao amanhecer o destacamento deu pela fuga da tropa. Já era muito tarde !
Em todo episódio, só houve uma baixa: a do agricultor. Sim, houve ainda um ferido leve: Severo ! Ele cortou o dedo enquanto, sentado no chão, escondido no canavial, vizinho à casa, descascava cana para chupar, enquanto as balas , por cima, cortavam as folhas e ele esperava por um reforço que não chegava, talvez porque não existisse e , mesmo se houvesse, sequer havia sido acionado. Foi garapa !


J. Flávio Vieira

2 comentários:

Jose Ramon Santana Vazquez disse...

...traigo
sangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...


desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ


COMPARTIENDO ILUSION
FLAVIO

CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...


AFECTUOSAMENTE


ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE CUMBRES BORRASCOSAS, ENEMIGO A LAS PUERTAS, CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER Y CHOCOLATE.

José
Ramón...

jflavio disse...

Abraço ao Ramon pelo belo post.
Gracias