A princípio, a notícia pareceu de todo inverossímil.
Chegara na praça , de repente, como uma bomba destas que explodem subitamente,
em Noite de São João, sem a necessidade de se lhe atearem fogo no estopim. E a
praça é a difusora de notícias em cidade do interior. As rodinhas de
aposentados, desocupados ali estão ávidas por novidades, sôfregas por um pouco
de adrenalina, afinal a desgraça alheia sempre cai nas almas como um lenitivo,
um ungüento para as nossas miudezas e
frustrações de todos os dias. Da boca para fora, todos lamentam as catástrofes
do vizinho, mas no fundo do coração bate sempre aquele consolo : “Tá vendo? E eu
aqui reclamando da vida!” O câncer, a
morte, a falência, a droga aparecem sempre como uma calamidade terrível quando
batem , por acaso, na nossa porta; ao adentrarem, no entanto pela janela do
vizinho, após o choque inevitável, sempre nos toca aquele conforto do “antes lá
do que cá”, do “ainda bem que não foi aqui”.
---
Júlio e Risoleta se separaram !
A
notícia que tomou de assalto a praça, naquela manhã, a rigor, não poderia se
considerar um furo de reportagem.
Separações de há muito tinham abandonado a prateleira das novidades. Os casais
se ajuntam não mais condenados às galés perpétuas, mas cientes da temporariedade
dos sentimentos e do dinamismo da vida. Juram não mais “até que a morte nos
separe”, mas “até que a vida nos aparte”. O que havia, pois , de inacreditável
no caso de Júlio e Risoleta ? É que, amigos, há poucos anos tinham comemorado
as Bodas de Prata e sempre perfizeram aquele casal perfeito, só existente nos romances mais açucarados.
Risoleta tinha um pequeno comércio na cidade, no ramo de confecções íntimas e
Júlio aposentara-se como bancário de um
tempo em que esta ainda era um profissão de algum status e de remuneração
digna. Tinham dois filhos já formados e
casados e que viviam fora, cada um tangendo a vida sem muitos atropelos. O casal
sempre fora um modelo de ajuste familiar e, inclusive, era o exemplo sempre
citado nas brigas dos outros casais da redondeza : “Você devia ser como Júlio!”
“Veja a Risoleta, porque você não se mira no exemplo dela, sua engraçadinha?”
Comentava-se
à sorrelfa que a estabilidade do casal devia-se, principalmente, à paciência
quase que monástica do nosso Júlio. Calmo, tranqüilo, pacificador, nunca se
soube de qualquer atitude sua que ferisse os rígidos preceitos da Glória Kalil.
Kardecista de carteirinha, carregava
consigo uma visão muito tolerante e espiritualizada da existência e dos
caminhos e veredas dos homens na sua viagem terrestre. A convivência com os
filhos, amigos e colegas de trabalho
sempre se mostrara de uma amabilidade a toda prova. Adorava a esposa e a
tratava como uma rainha e esta atitude não mudou em nada com o passar dos anos
e a chegada das cãs, das estrias e dos pés-de-galinha. Quanto à Risoleta , não
se podia dizer o mesmo no trato diário com as outras pessoas. Diziam os mais
próximos ser meio volta-seca, meio espoletada. No que tange, no entanto, ao trato
familiar, não se lhe sabia de máculas, principalmente na relação direta com o
marido ideal que, convenhamos, não podia ser de outra maneira. Por isso mesmo, a estranheza da notícia que se acentuou mais
ainda quando se soube ter partido de Risoleta a decisão irrevogável. Separar-se
daquele príncipe ? Que loucura deu na
cabeça daquela doida?
Passaram-se
os dias e a novidade confirmou-se. Risoleta saiu de casa e alugou um pequena
quitinete em um bairro mais afastado. Júlio permaneceu em casa meio recluso,
com suas lembranças . Os dois negavam-se a comentar as miudezas da lavagem de
roupa suja com os amigos. Não estava mais dando certo ! Esta era a única frase
com que tentavam concluir o fim do relacionamento de trinta anos. Pagou a pena máxima, Júlio! Havia
comentado um amigo mais chegado.
Uns
dois meses depois, por fim, a verdade brotou,
na Audiência de Conciliação. O casal viu-se diante do juiz que , os
conhecendo de muitos e muitos anos, imaginou , quem sabe, haveria possibilidade
ampla de reatamento. Poderia ter sido apenas um pequeno arrufo num casal
perfeito que não tinha nenhum traquejo em arranca-rabo e , o primeiro, depois
de muitos e muitos anos, poderia ter sido o estouro da barragem, a explosão de
alguns poucos ressentimento que puderam ir se acumulando no dia a dia e ,
represados, terminaram naquele tsunami. Ouviu,
primeiramente, Júlio que, como sempre, educadíssimo, fez um discurso de loas e
mais loas à companheira, louvando a convivência benfazeja de tantos e tantos
anos e finalizou dizendo não compreender ainda hoje o motivo de estarem
separados. Júlio deixou claro que a decisão intempestiva tinha sido tomada pela
esposa e que estava pronto a seguir , mais uma vez, a vontade da companheira
que escolhera para percorrerem juntos o pomar e também o monturo existência.
Como bom espírita tranqüilizou-se : “Seja como for, meritíssimo, estou pronto a
seguir meu Karma!”
Antes
de ouvir Risoleta, o juiz imaginou que, finalmente, haveria um bom termo, numa
Audiência de Conciliação. Geralmente se transformava numa rinha onde se
digladiavam dois galos cansados e amargos por nenhum espólio de guerra. A fala
da esposa que se seguiu, não podia lhe trazer melhores augúrios:
---
Seu juiz, eu casei com um homem perfeito ! Foram quase trinta anos com Júlio e eu
quero que fique bem claro : Não tenho uma mínima coisa sequer para reclamar
dele. Uma cara feia, um palavrão, uma discussão, um mau trato , nadicas de nada
! Ele sempre me tratou como uma rainha. Nada me faltou ! Aliás, eu nem
precisava ter um desejo! Ele adivinhava e me ofertava antes que eu falasse. É
um pai exemplar e mais que isso: um pãe! Aquela mistura de pai e mãe numa só
pessoa. Cuidou dos filhos com um desvelo difícil de se ver. E mais, nunca eu soube,
durante todos esses anos, de uma só imperfeição, um só deslize na sua conduta
em casa, na rua, no trabalho. Júlio, meritíssimo, não existe ! É um santo !
O
magistrado respirou fundo e pareceu feliz com o desenrolar dos fatos. No
íntimo, no entanto, cutucava-lhe uma desconfiança: por que diabos, então, o
gesto tresloucado da mulher, jogando tudo para o alto e tomando aquela decisão
inesperada? Salomonicamente , dirigiu-se ao casal e enfático tentou levar a termo a reunião:
---
Fico feliz pela decisão de vocês reatarem tudo. Podemos , então, dar cabo da
ação de divórcio, não é D. Risoleta ?
---
De jeito, nenhum, seu juiz, eu quero a separação !-- Exasperou-se a mulher.
O
juiz, confuso, ante à inesperada reviravolta da causa, voltou-se para a esposa
de Júlio, já sem muita paciência:
---
Como, minha senhora? Depois de tantos elogios a seu consorte, o homem perfeito
! A senhora quer se separar alegando o quê?
Risoleta,
por fim, explanou o que o marido, o juiz e o povo da praça até aquele momento
na entendera:
---
Perfeição, seu juiz ! Perfeição! Não há quem agüente viver com um homem
perfeito desses, não! Não há ! Júlio é para estar num altar e não numa casa com
uma esposa. Perto de tanta perfeição, seu juiz, os defeitos da gente ficam
muito mais visíveis. Eu já não estava mais me suportando! Imagine o senhor uma
aquarela pintada com um amarelo forte, sem nuances de cores! Com o tempo começa
a ofuscar! Não há olho que agüente tanta
luminosidade. Assim é o Júlio, falta-lhe o contraste do claro-escuro, da sombra e da luz. Até em geléia , já se coloca
pimenta, não é ?
Ante
a estupefação do marido e do juiz, ela fez suas alegações finais:
---
Pense aí , seu juiz, comer durante trinta anos a mesma comida limpíssima,
saudável, mas sem tempero nenhum ! Sem sal, sem pimenta , sem cominho, sem
alho, há quem agüente? O Júlio parece um doce de gergelim, gostoso, mas
durante trinta anos, direto ? Tá doido? Arripunei !
Esclarecidos
os fatos, providenciou-se o apartamento dos trapos. No dia seguinte, Rui
Pincel foi visto se dirigindo sorrateiramente
ao cabaré. Quando os amigos perguntaram seu destino, ele explicou:
--- Vou ali na Rua da Saudade botar uns cravos e
um salzinho no meu doce, senão a mulher me larga !
J. Flávio Vieira
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