Nos tempos áureos da ditadura, em razão do programa
econômico na época chamado de arrocho e hoje, austeridade, os ditadores
inventaram uma instituição para acalmar o povo onde se venderiam alimentos por
preços mais baixos. Mas como era da natureza social da dita cuja, o foco era a
classe média tradicional já existente e o destino, por consequência, barrar a
mobilidade econômica e social da maior parte da sociedade. Era o tempo do
crescer o bolo para depois dividir.
Então os senhores do acordo conservador, nascido nas
manifestações da ”família com deus pela liberdade”, inventaram uma coisa
chamada COBAL e não sem razão dois mercados foram implantados na Zona Sul do
Rio: no Humaitá e no Leblon. Com o tempo e o fim da ditadura a COBAL foi se
modificando e os espaços livres foram se transformando em bares e restaurantes muito
bons. No Leblon, por exemplo, todos os sábados era uma festa de figuras da
cultura nacional, tomando uma e comendo outras, enquanto compravam um
horti-frutti aqui e acolá. Tom Jobim era uma das figuras de destaque.
Na COBAL aqui perto, a do Humaitá, igualmente aconteceu de
se multiplicarem restaurantes e bares e não só para o almoço, mas como para
noitadas. Aí começa de fato a nossa história. Falo da meninada que até pode ter
sido arrastada para as tais manifestações do conservadorismo golpista. Mas que,
também, pertenceu a alguma família perseguida pelo furor punitivo de quem
praticou um ato ilegal e que fora treinada para botinadas. Acontece que esses
meninos entre os cinco anos e os vinte anos no 31 de março de 64, logo era
parte da revolução dos costumes que rebentava a face interna do
conservadorismo, das passeatas estudantis que expunham a truculência econômica
e social da política ditatorial e, claro, forçaram o aumento de vagas nas
universidades e ali viveram uma liberdade maior que os pais, embora ao final
alguns concluíram que “somos os mesmos e vivemos como nossos pais.” Um exagero
depressivo por certo.
Ontem à noite na COBAL do Humaitá, num mezanino, um local um
tanto ajambrado, de panos pretos e iluminação precária, chamado Espírito das Artes
uma festa do estilo pleno daquela meninada. Toda ela dos cinquenta anos em
diante. Cabelos brancos é a moda, roupas à vontade e largadas o estilo, cabelos
longos, bonés, mesas, copos, bebidas e comidinhas. Três apresentações com a
chamada Prata da Casa. Não do Espírito das Letras, mas dos donos da festa.
Era uma festa do corpo docente e ex-alunos do mestrado e
doutorado da COPPE (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro). O Mário Vidal completava 60 anos com a
camisa do Tricolor para comemorar suas raízes: criado na Rua General Glicério
em Laranjeiras onde jogara bola e criara conjuntos musicais da época com a
turma da rua.
Mas antes vamos ao estilo da festa. Quando o tempo se move e
o atacado toma conta das emoções, dos sentimentos e da memória, jamais o tempo
volta. Mas ontem no a granel ambiente, entre goles e goles, belisco e belisco,
luzes e música as pessoas circulavam pelo espaço vazio a moda de salão de
festa. Entre uma mesa e outra, falando aqui e acolá, sentando-se a observar
quem circulava e quem circulava movendo o corpo como se numa passarela a
mostrar-se.
As “moças” e os “rapazes” eram a rebeldia não localizada lá
nos anos setenta, mas esta daqui e de agora. Aqueles caras de “pós”, “pós-doctor”,
longos enfrentamentos pelo hemisfério norte nas vetustas universidades
ocidentais e alguns até transitado pelo oriente, são a expressão do que nada é
sólido e tudo se move. Compreendem as leis conservadores da mecânica newtoniana,
mas alguns se afoitam no impreciso conceitual da quântica, descem à observação
no campo teórico do modelo matemático, não apenas para exploração capitalista,
mas vão ao centro filosófico da matéria, pelo menos aquele mais atual: a
partícula.
Ninguém é “saradão”. De academia, pelo menos na aparência.
Mas certo que usam alguns paradigmas atuais: dieta, exercícios, pilates, RPG e
o regular check-up. Mas todo mundo era rebeldia expressionista. Paqueras certo
que houve. Trocas de olhares proibidos entre outros quando a cada um a parelha
estava ao lado. Era o clima geral das festas destes Steve Jobs do Brasil. E já
vou adiantado para os mais apressados: a diferença não se encontra entre nós
aqui e os engenheiros de lá, não é medida por QI e nem melhor cultura: é tão
somente o desenvolvimento capitalista dos EUA e do Brasil. Como sabemos é uma
visão de momento. Não tardam que alunos dessa meninada se tornem o mesmo que o
símbolo do engenheiro criativo e revolucionário. Basta o Brasil manter a
trajetória de grande centro acumulador e irradiador aqui no Hemisfério Sul.
Vamos ao programa. O Mário Vidal, aniversariante e
engenheiro de produção e a Betinha Gomes médica começaram o show com San
Francisco de Scott McKenzie, Preta Pretinha do Moraes Moreira e Twist and Shout
dos Beatles. Sacaram a seleção? Uma transgressão de estilos distintos como
típico daquele embate entre a indústria fonográfica de origem americana: os da
casa e o peso da música em inglês. Foi essa a formação musical desta meninada.
Depois veio o conjunto Comitê de Ética formado pelo Mário,
Paulo Soares, Renato Bonfatti e José Mário Carvão. Todo mundo entre docência e
discência da COPPE. No programa A volta dos VIPS, Honk Tonk Women dos Rolling
Stones, A Hard Day´s Night dos Beatles, Gatinha Manhosa do Erasmo, Adivinha o
quê?, Lulu Santos; Primavera do Tim Maia e Simpathy For The Devil dos Rolling
Stones. O Simpathy tornou-se o símbolo da meninada: o Paulo fez uma voz baixa e
gutural e o Zé Mário era o próprio adolescente, um tanto destrambelhando no
balançar, com uma mão num bolso e outra largada, mas um pouco tensa. Era aquele
que todos eram: sem jeito, mas prontos para pegar desde novos rumos até o amor.
E a noitada entrou pela meia noite com a música
instrumental, do exposto através do canto solista de cada instrumento. O outro
conjunto formado pelos físicos Celso Alvear e Ricardo Amorim, pelo matemático
Mario Jorge e pela professora de letras Sonia Mundim. O Celso no violão, o
Ricardo no sax tenor, o Mário baixo elétrico e Sonia no teclado. Esse pessoal é
mais músico, todas as semanas se encontra e toca em conjunto. O Mário Jorge
toca em bares na noite do rio. O Ricardo Amorim é o protótipo homem da
rebeldia, fora do mercado de música, mas fazendo música ininterruptamente, tem
duas graduações, pós-graduações e hoje mesmo faz o ENEM para a faculdade de
Música do UFRJ.
O Celso Alvear embora um corpo ousado que coleciona carros
porque tem dificuldade em vendê-los, escala as montanhas do Rio, pinta bem,
entre outras atividades físicas, é na verdade uma mente flutuando numa região
imprecisa. Se tentarmos observar onde se encontra, essa observação já é o
suficiente para movê-la para outro espaço. Não é que seja uma incerteza
absoluta, é uma precisão local tocada pela imprecisão conceitual. O Mario Jorge
o conheci jorrando sonhos para quem pretendeu fazer uma grande saúde pública:
modelar fluxos hospitalares para tornar estas instituições inteligentes e
voltadas para as pessoas que a procuram.
Esse pessoal como se vê são os rebeldes um tanto quanto de
garagem, não gostam tanto das passeatas, mas vão, não quebram o pau, mas indicam
os pontos frágeis de fratura. A Sonia conheci ali e não tenho nada a acrescer
ao que não seja a sua própria performance no grupo que tocou: a belíssima A Rã
do João Donato, Just Friends de Klemmer e Lewis, Satin Doll de Duke Elington, A
Foggy Day de Gershwin, There Will Never be Another You - Warren e Gordon; Vou
Vivendo do Pixinguinha, Sossego do K- Ximbinho, Acariciando, Abel Ferreira;
Migalhas de Amor, Jacob do Bandolim; Inclemência, Guerra Peixe e Flores do
saudoso maestro Moacyr Santos que como dizia Vinicius de Morais: não és um só,
és tantos.
Daí que de fato em rebeldia advogo: abaixo o controle
remoto, os veículos automotores e a cultura comercial do atacado. Viva o varejo
e o a granel. Ou viva a rebeldia sem comércio algum que é afinal a mensagem de
tudo.
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