Os Cangatis dominaram a política em Matozinho por mais de
quarenta anos. Ligados diretamente à UDN ,
fizeram , por muitos anos, da cidade um feudo. Aos amigos as brechas da
lei, aos inimigos sobravam os rigores. Existia, inclusive , um slogan na região
:
---“Em Matozinho ou
é Cangati ou coitado”!
Naquele ano, no entanto, a coisa estava
pegando fogo. Sinderval Bandeira envergara a bandeira do PSDB local, com amplo
apoio do governador, seu correligionário
e entraram dispostos a dizimar a dinastia dos Cangatis. Tantos anos de poder
haviam viciado a poderosa família que carregava consigo a certeza da
invencibilidade. Nem percebiam que o poder desgasta, que se vão criando mais
desafetos que amigos e que insidiosamente sempre se vai firmando, na população,
um desejo de se respirar novos ares. Que
mudem ao menos os bolsos ! --- bradava Jojó Fubuia , na praça, resumindo as
aspirações de mudança dos matozenses. A campanha eleitoral foi tensa e
violenta: tripas gaiteiras vazadas, tapa em terreiro dos olhos, cachaços
lascados. Abertas as urnas, para total surpresa do candidato Pedro Cangati,
Sinderval foi leito com mais de sessenta por cento dos votos.
Em
cidade pequena, esse filme sempre tem final previsível. Nos últimos meses do mandato , Pedro procedeu a um verdadeiro desmonte da
prefeitura. Parecia vingar-se daqueles que , no seu entender, o haviam traído.
Atrasou salários dos funcionários, cancelou pagamento de contas , suspendeu
coleta do lixo, suspendeu distribuição de medicamentos, demitiu sumariamente
uma chusma de funcionários. Jojó me dizia que isso é um absurdo, coisa de vila
de muros baixos e acrescentava: em
cidade grande, amigos, não é assim , não ! É muito pior !
Não
bastasse esse desmazelo, na última semana, o prefeito resolveu fazer o rapa no
que restava na prefeitura. Encostou um caminhão e providenciou a mudança:
móveis, máquinas de escrever, documentos, tudo. Deixou apenas o cofre velho, no
meio da sala, mesmo assim sem um centavo furado dentro dele. Fechou o prédio
praticamente vazio e ainda jogou as chaves dentro do Rio Paranaporã.
Uns
quinze dias antes da posse de Sinderval, Marinaldo Pé de Zamba, um bodegueiro
da Serra da Jurumenha, entrou de prefeitura adentro, com um pacote mal enjembrado
na mão. Era uma gaiola coberta com papel de embrulho , cheia de furos esparsos,
feitos de maneira irregular. Procurou Mundico Bizerra o Secretário de Finanças.
Deu entrada na sala do barnabé e explicou o motivo da viagem. Sabia que o
mandato atual estava terminando e como estava devendo a Mundico uma dívida
refém à dispensa de alguns impostos do seu pequeno comércio, vinha cumprir o prometido
. Esticou a embalagem e colocou em cima
do Bureau da autoridade:
---
Mundico, tá aqui! Tô pagando o combinado! Sei que agora você , com essa mudança
de política, vai ficar mais por baixo de que diferencial de cururu. Pois to
pagando homem de Deus, taqui seu papagaio ! O bicho é falador que é danado !
Mundico
agradeceu pela lembrança, tranqüilo por não ter ninguém na sala para
testemunhar o escambo. Resolveu colocar a caqueira com o papagaio no seu
gabinete, até levá-lo para casa, nas proximidades da posse do opositor. Pois
bem, o danado do louro presenciou todo o combinemos do saque, justamente nos
dias que antecederam ao butim. Eram reuniões e mais reuniões. Vamos carregar
isso, vamos roubar aquilo, não vamos deixar pedra sobre pedra, vamos limpar o cofre... No dia do arrastão, a sanha
foi tanta que até o papagaio de Mundico foi afanado e levado à casa do prefeito,
junto com todo o resto dos pertences públicos.
Os
pessedistas, no poder, não perderam tempo. Espalharam em todas as bocas
difusoras da cidade, o verdadeiro saque cometido pelos Cangatis. E fofoca em
cidade pequena é como coceira em macaco: não tem que dê fim. Substitui com larga vantagem as outras mídias.
Pedro Cangati estava sobre acirrado ataque da população por conta da
roubalheira explícita. No entanto, o que mais lhe enchia o saco era o velho
papagaio que , não parava de repetir, as tramóias que aprendera na Secretaria
de Finanças .
---
Currupaco... Vou pegar todo o dinheiro do cofre...Currupaco... vou carregar os
móveis lá pra casa...Currupaco vou roubar os documentos e queimar...
Cangati
começou a se invocar com o louro. Não queria aquele testemunha ocular ( ou
auditivo) ali, enchendo o saco o tempo todo, como um verdadeiro dedo-duro. Fulo
da vida, meteu a mão na gaiola, amarrou o papagaio com um barbante e ameaçou:
---
Vai ficar assim uma semana, seu filho da puta, para nunca mais roubar!
O
louro, todo ingriziado, ficou ali em cima da máquina de costura, sem poder se
mover. Estava ali já há uns dois dias,
quando observou, na parede, uma imagem de São Sebastião, naquela pose clássica.
Amarrado numa árvore e todo flechado, com o pezinho levantado à Ana Botafogo e
um olhar enviesado suspeitíssimo de soldada romana. O papagaio resolveu ,
então, entabular conversa:
---
Ei, mulher ! Tu tá escândalo ! Me diz , há quanto tempo tu tá amarrada aí nessa
árvore ?
São
Sebastião, meio a contragosto, responde:
---
Há uns mil e oitocentos anos, pelo menos...
O
papagaio saltou, quase quebrando os barbantes , e surpreso, quis saber:
---
Mil e Oitocentos Anos ? O que diabo foi
que tu roubou ? Tu é deputado ? Senador ? Governador ? Participou do
Assalto do Banco Central ? Vôte !
J. Flávio Vieira
Nenhum comentário:
Postar um comentário