J. Flávio Vieira
Os
nome e sobrenome não eram, definitivamente, próprios para Matozinho. Talvez,
por isso mesmo, D. Lilibeth Safra
Vanderbilt jamais conseguiu se adaptar àqueles cafundós do Judas. Despencando para os setenta e lá vai porrada, viúva, esticada e reesticada por várias plásticas,
ela morava na vila há mais de dez anos. Vivia reclusa, não participava da vida
social da cidade, não falava com quem quer que fosse, com exceção, claro, de
Felismina – sua empregada de muitos e muitos anos – por inteira falta de opção, a quem tratava , mesmo assim, como se a Lei Áurea nunca tivesse sido
promulgada. Matozinho, por outro lado, não gostava nem um pouco de D. Lili -- como a chamavam, às escondidas, quebrando
o ritual de nobreza, denominação
contrária totalmente à vontade da dona. A senhora contemplava a todos do andar
de cima, com desdém e um certo nojo mal contido. O povo, entre dentes,
vingava-se daquela importância . Mulher nobre daquele jeito era para morar num
castelo no Vale do Loire e não em Matozinho! E, de língua em língua, pinicavam o oratório
dela, trazendo a versão oficiosa das outras cores menos brilhantes e mais
esmaecidas que se escondiam por baixo de
tanto sangue azul.
D.
Lili era filha do velho Pedro Cangati, um dos líderes políticos mais influentes
da cidade, nos anos 30 e 40. Nascera, na verdade, Setembrina
do Espírito Santo Cangati --- parecia nome feio, palavrão para se imprecar
em desafetos, mas aquilo, por mais incrível que possa parecer, era nome de gente
, sim senhor ! O Setembrina herdara de
uma avó materna e o Cangati do pai, o Espírito Santo certamente compunha o nome
na intenção de proteger o dono daquele aleijo ortográfico. Ainda mocinha,
Setembrina , carregando o nome ou o karma, partiu para o Rio de Janeiro, onde
estudou e renegou seguidamente suas origens plebéias. Andou viajando p constava o local de nascimento: Salzburg na Áustria e o nome pomposo Lilibeth
Safra Valderbilt, filha adotiva do Sr. Pedro Cangati. D. Lili , por muitos
anos, permaneceu no Rio, nem se dignava dar as caras em Matozinho. Só falar
naquela cidadezinha lhe dava engulhos, se fazia de mal entendida e negava mais
que Pedro antes do canto do galo. Morava em um apartamento comprado pelo pai na
Avenida Nossa Senhora de Copacabana, onde se metia em festas grã-finas e posava
de bacana. Tudo ia às mil maravilhas com ela e seu ciclo de amizades, até que o
curso normal das coisas deu um cavalo-de-pau.
ela
Europa e, depois, mesmo voltando ao Brasil, se radicou oficialmente no
continente europeu. Para tanto, claro, precisou trocar, rapidamente , o nome
brega e, através da força política do pai, um novo Registro Civil foi lavrado em
Matozinho, pelo notário Zé Filgueiras. Lá,
Um
belo dia, o velho Pedro Cangati fez a
viagem derradeira. A mãe de Lilibeth já havia seguido na frente alguns anos
atrás. Aberto o inventário, viu-se que as enormes posses do chefe político se
diluíam entre os doze filhos legítimos e mais de trinta espúrios que Cangati deixara espalhados na região.
Lilibeth, já balzaquiana, caiu do andor. Vivera até então às custas do pai e da
cagação de goma. Não possuía emprego
qualquer, acostumara-se ao subsídio. Percebendo que sua dinastia estava
ameaçada e que até o apartamento do Rio teria que ser vendido para o rateio, Lilibeth
desesperada, encontrou a única saída possível. Botou-se para cima de um primo,
Ludovico Cangati, vereador em Matozinho e dono de muitas terras por lá. Ludovico
era solteirão, comentava-se, à boca miúda, que ele vazava corrente , que já
vivia maritalmente com o capataz da sua
Fazenda Unha-de-Gato, mas D. Lili não viu escapatória. Casou com Ludovico ( que
pôs uma nuvem de fumaça no falatório sobre sua sexualidade), salvou ela a reputação, mas, com um grave efeito colateral : teve que se
mudar para Matozinho. Aliás, em parte : seu corpo estava ali na vila, mas a
alma ainda perambulava pelo Sena e pelo Calçadão de Copacabana. A convivência
com o esposo, não pareceu difícil. Ela fechava os olhos para as preferências de
Ludovico, até mesmo porque, pelo que se sabia das suas perambulações cariocas,
ela apreciava mocinhas e nunca fora muito “fanática por rola”.
Assim,
parecia mais que justificável a reclusão de D. Lili. Primeiro, não queria se
misturar com aquela gentalha, aquela récua de pé-rapados que vivia naquele oco
do mundo. Depois, queria fugir de insinuações quanto às preferências esdrúxulas
dela e do marido. No mais, era um oceano de preconceitos: tinha náuseas diante
de negros, de pobres , e, principalmente, de nordestinos, judeus e homossexuais. Periodicamente, partia para o
seu querido Rio e lá fazia suas compras e degustava suas menininhas. Roupas,
sapatos, perfumes finos atulhavam as malas na volta. Usava-os em casa, pois não
saía para nenhum lugar daquelas brenhas imundas. Mandara construir uma capela
em casa e pagava ao Padre Arcelino para celebrar, todo mês, uma missa para ela
e Ludovico . A Felismina era permitido assistir ao culto do lado de fora.
Desconfiava-se
que D. Lili, apesar da nobreza, não perdera , de todo, o gosto por algumas
iguarias locais. Muitas vezes, a força
dos Cangatis lhe batia forte. Mas não
dava o braço a torcer. Pedia a Felismina, sorrateiramente, para comprar, às
escondidas, o pé-de-moleque de Toinha Socó, a Buchada de Cida , a lingüiça de
Mundica de Bertioga, o quebra-queixo de Zuzu Jurumenha. Ia a funcionária, no
entanto, com ordem expressa de dizer que era para ela mesma, que, afinal, uma
locomotiva chique, não come comida digna de ser oferecida aos porcos, né ? O que diria Glória Kalil ?
Beirando
oitenta, D. Lili caiu doente. Ludovico a levou ao Rio. Diagnosticaram uma
doença grave. Ela, no entanto, voltou feliz, encantada com o nome pomposo da
moléstia: Esclerose Amiotrófica Lateral. Aquilo, sim, era nome digno de constar
num atestado de óbito ! O certo é que a
saúde de Lilibeth degringolou rapidamente. Numa das revisões, faleceu no Rio de
Janeiro, para sua alegria. Ludovico a sepultou por lá, seguindo a vontade da
mulher :
---
No São João Batista, viu Ludovico? Não esqueça !
Uns
dois anos depois, o esposo resolveu fazer o traslado dos restos mortais para
Matozinho. Estava ficando velho e a distância o impedia de visitá-la
regularmente. Lili deve ter se revirado no túmulo, como ventilador. No novo
sepultamento, no Cemitério Nossa Senhora da Alegria, os coveiros ficaram
surpresos. As roupas da locomotiva estavam puídas, os ossos pareciam negros(
que castigo!) e o perfume que rescendia dos restos mortais não eram do Chanel
Número 1 ! Lilibeth não deve ter apreciado
muito a homenagem que a Câmara de Vereadores lhe presenteou. Uma rua
periférica com o nome em letras graúdas: “Setembrina do Espírito Santo Cangati”
e, logo abaixo, entre parêntesis, em caixa miudinha : “D. Lili”. O pior é que a
ruazinha desembocava no lixão da cidade.
Ao
menos o jazigo que Ludovico mandara erguer mostrava-se digno da importância da
moradora. Todo de mármore, monumental, com anjos dependurados nas beiradas e ,
finalmente, o Lilibeth Safra Vanderbilt ( 1936-2012) , em alta relevo e, abaixo,
o latinório : “Resquiat in
Peace”. Semana passada, no entanto, Ludovico visitando o cemitério deu com uma
cena inusitada. Em cima do túmulo uma cadela vira-lata no cio, sendo coberta por dois cães pé-duros.
Saiu correndo, imaginando a profanação do jazigo de Lili, uma pessoa tão fina e
elegante , presenciando aquela afronta logo acima dela. Mas que putaria !
Procurou o coveiro e pediu providências imediatas. Inconscientemente, minorou a
agressão que estava acontecendo, utilizando a técnica Safra-Vanderbilt de
converter o brega em chique:
---
Por favor, seu coveiro, acuda, ali ! Tem dois Dobbermans fazendo Mènage à Trois
com uma Poodle, no túmulo de Lili !
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