O espaço onde vivemos não apenas garante a sobrevivência.
Desenha nossas emoções, o modo como compreendemos o conteúdo e o continente. A
formação da memória e o processo pelo qual a memória não é um mero arquivo. É
coisa viva. Que pulsa, se anima, se entristece, apreende coisas novas,
inclusive dos acontecidos.
Moramos numa ladeira. Uma ladeira que tem curva. Portanto,
não apenas o aclive esconde pedaços de sua sequência para cima ou para baixo,
como a curva extrai eventos na proximidade. Isso é, a visão deles. Pois tudo o
que resta a outros sentidos, se tem por testemunha de ocorrência.
E como ladeira, no talude da montanha, à audição adiciona
uma certa reverberação dos sons. São os carros bufando na subida, os freios na descida.
São cães latindo na caminhada de seus donos, como naquele momento do sol nas
prisões. Os cães dormitam no espaço menor dos apartamentos.
De vez em quando lá de algum lugar que não se enxerga começa
uma chamada. Uma voz repetindo a mesma palavra. Subindo pelas encostas. Como
uma pena voando em direção aos galhos das árvores altas que margeiam a
passagem. Uma palavra bela. Um canto. Um som que vai no âmago da memória e
extrai as coisas passageiras, tidas como idas, mas havidas como atuais.
E a voz vai revelando fonemas. Vai subindo. Vem lá de baixo.
Se aproxima da minha janela. Com pouco a palavra se revelará como um sujeito em
sua ação. Uma ação que juro, antes do acontecido, é a fusão de centúrias, da
lida humana, dos pés atemporais como aqueles que vão pelas ruas para expressar
as mãos ritmadas do triângulo anunciando o cavaco chinês.
E do primeiro momento que o olhar capta a visão, o ouvido
interpreta a palavra. VASSOUREIRO! E repete tantas vezes quanto a oportunidade
de vender as suas vassouras. Vai subindo pela minha rua, o vassoureiro do
início do século XX aqui no Rio de Janeiro. O momento em que fica claro que a
saudade também é uma forma de eternidade.
Pego na carteira de dinheiro. Não quero nem
saber a situação das minhas. Pego o elevador e desço para comprar alguma coisa
com o vassoureiro. Tudo para que o grito do vassoureiro nunca desapareça da
minha rua. Nesta ladeira.
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