Conta
o folclore que ele teria obrado inúmeros
milagres, entre eles haveria restaurado todo um campo de trigo já maduro
que havia sido estropiado por uma multidão que o seguia. Inúmeras cidades
brasileiras o tem como padroeiro, entre elas, a nossa aristocrática Barbalha
que há quase noventa anos realiza a sua tradicionalíssima Festa do Pau da Bandeira. As festas religiosas brasileiras carregam
consigo aquela mescla típica do profano e do sagrado. Talvez por tradicionalmente
terem advindo das festividades pagãs da Idade Média como a
Saturnália e as Celebrações de Fertilidade. Assim, as
novenas e rezas se juntam a rituais pagãos que vão desde a libações
alcoólicas ( “A Cachaça do Seu Vigário”), ao uso do pau da bandeira como
símbolo fálico, à coreografias eróticas
em torno do prodigioso vergalhão. A
Festa se assemelha às celebrações de fertilidade ainda hoje presentes no Japão
como a Hime no Miya e a Hounen Matsuri.
O
Pau da Bandeira de Barbalha é , indiscutivelmente, uma das mais concorridas e
bonitas festas populares do Ceará. Tem crescido de ano a ano, a cidade toda se
enfeita e se engalana para a chegada do Santo casamenteiro. Claro que, numa festividade
de tamanhas proporções, sempre existem riscos proporcionais ao público por ela atraído. Este ano, ocorreu a trágica
morte de um dos carregadores do pau , o
Sr. Cícero Ricardo, esmagado pelo imenso tronco durante o transporte. Havia já
antecedentes de acidentes idênticos, com fraturas expostas em alguns
participantes em anos anteriores. Haviam ocorrido, também, outros acidentes
fatais com morte em carregamentos de
paus de santos, como em Caririaçu alguns anos atrás.
Em
nome da tradição, argumenta-se sempre sobre a necessidade imperiosa de manter o
script da festa, exatamente como se vem fazendo nos últimos noventa anos.
Existem, no entanto, a meu ver, ponderações que precisam ser feitas. Tudo na
vida é dinâmico e, se se reparar bem, a festa mudou imensamente durante todos
esses anos. Além de tudo, não é justo se manter culturas nocivas sob o simples
argumento que Cultura é para ser preservada. Os sacrifícios humanos fizeram
parte de muitas civilizações , nem por isso hoje se defende a sua manutenção.
Nossos índios eram em grande parte
canibais, essa Cultura deveria ter sido preservada ? Por que Cristo se pôs contrário ao
apedrejamento de adúlteras, se aquela selvageria era uma profunda tradição
entre os hebreus ?
Acredito
que não existem justificativas plausíveis para a derrubada anual de uma imensa
árvore apenas pela simples alegativa da tradição da festa. O Ibama , o governo
do Estado, a Prefeitura de Barbalha e a Igreja têm o sagrado direito de interceder contra
esta barbárie. O próprio Santo Antonio teria recuperado todo um campo de trigo
, preocupado com o impacto ecológico. É justo, em seu nome, perpetrar
anualmente um crime ambiental ? Por que não usar o mesmo angico centenário deste ano, nos próximos cem ? Teríamos ainda a
vantagem de duplicar a festa : o
fincamento do pau no início e a retirada no final das festividades.
Quanto
à morte de Cícero Ricardo , as autoridades se adiantaram em afirmar que se tratou
de uma fatalidade. Para mim, o acidente era totalmente previsível. Imaginar o transporte
de uma árvore de muitas toneladas, por muitos quilômetros , embalada por uma
multidão de penitentes , na sua maior parte inebriados pela “Cachaça do Seu
Vigário”, tendo que periodicamente pôr abaixo o imenso vergalhão, num movimento
que necessita de precisão cirúrgica, certamente se trata de uma fábrica de
acidentes. Por que não utilizar métodos mais modernos de transporte em que a
segurança seja a principal normal a ser pensada ? A festa agora envolve um público gigantesco,
se comparada a anos atrás, a segurança de todos deve ser prioridade absoluta
para evitar as famosas fatalidades previsíveis. A integridade física dos festeiros deveria ser
a principal bandeira do pau.
Ademais,
numa festa de tamanho vulto, faltaram as blitzes com seus bafômetros. A sensação que temos é
que há ingerências políticas, fazendo com que a polícia rodoviária maneire , lave as
mãos , sob pena de prejudicar a diversão do pessoal. Quantos motoristas saíram
da Barbalha sem a mínima condição de dirigir , pondo em risco não só suas vidas
mas a de outros transeuntes ? O Código
Nacional de Trânsito não tem aplicação prática nas grandes festividades
nacionais ?
Diante
da pretensa fatalidade, o público sequer se compungiu com o acontecido. A
diversão continuou. Depois, sentada a poeira, as opiniões divergiram. Os
organizadores sacaram a versão do fatalismo: o acidente estava escrito nas
estrelas. Os incréus lembraram de imediato da pouca capacidade milagreira do
Santo que sequer conseguira proteger seu pupilo Cícero Ricardo. E os crentes,
preocupados com o profanismo da festa, sacaram o Velho Testamento e comentaram,
abertamente, o acidente fatal como um castigo dos céus. À frente de tudo, no
entanto, encontra-se o Estado, nas suas mais variadas instâncias, que tem como função precípua proteger a
população e dar-lhe a segurança necessária . Há necessidade , sim , de
regulamentar a festa, de criar mecanismos para que acidentes previsíveis e
evitáveis não aconteçam. A Igreja, por
sua vez, que tem, historicamente, o mando da festança, precisa tomar as rédeas
da solenidade, pois o princípio básico de qualquer religião é sim a preservação
da vida. O que aconteceu no último domingo não foi uma mera fatalidade, apenas
a Crônica de uma Morte Anunciada. Outras tragédias continuam plantadas
esperando a floração, regadas, ano após ano, pelas águas de uma perniciosa tradição.
Quantos sacrifícios serão ainda necessários até descobrirmos que a Vida ,sim, é que é a maior festa
?
J. Flávio Vieira
Crato, 05/06/15
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