Os Escolhos e o Brilho das Pepitas
J. Flávio Vieira
Se há uma regra imutável na propalada
“Cidade da Cultura” é a incrível e reiterada falta de espaço que ela destina aos seus artistas mais
importantes. São todos tratados como párias pelas sucessivas administrações
públicas nos últimos quarenta anos. Sucessivos Secretários de Cultura , durante
tantos e tantos anos, com raríssimas exceções, mantiveram-se como simples
marionetes, em pastas sem recursos específicos, sem direito de escolher seus
assessores diretos, indicados por critério meramente político , a mais das
vezes sem quaisquer mínimos atributos técnicos. As poucas verbas , arrancadas a
fórceps, empregaram-se em eventos esporádicos e pouco expressivos ou precisaram
ser endereçadas à parte mais frágil do caldo: a Cultura de Tradição. Há quase
meio século toda uma horda de artistas: músicos, artistas plásticos, de artes
cênicas, cineastas, literatos viram-se órfãos e enjeitados, sem o mínimo
incentivo para que continuassem alimentando o mito criado, ao longo dos anos,
que terminou por determinar a vocação da Cidade de Bárbara e Tristão, como
inerentemente ligada à Cultura.
Não foi muito
diferente com o amparo mínimo que se esperava do Estado do Ceará. Mesmo com a
criação dos Editais, com recursos bastante reduzidos, embora 50% destes
devessem ser encaminhados para o interior, os artistas viram-se assoberbados
com entraves burocráticos de largo escalão, difíceis de serem transpostos, pela
própria distância que nos afasta da capital, parecendo sempre que a má vontade
fazia-se estratégica e calculada com fito de desencorajar os artistas
interioranos e carrear os recursos , novamente, para Fortaleza. O certo é que
nossos artistas sobrevivem a pão e água: nossas rádios não executam suas
músicas; não existem espaços públicos viáveis para expor os trabalhos dos
pintores, escultores e fotógrafos; não há teatros, palcos e sons disponíveis
para peças, saraus e shows; as edições
de livros precisam ser custeadas inteiramente pelos escritores. Dois cinemas
prometidos para a cidade empererecaram , murcharam e, tudo indica, não sairão
nunca dos alicerces e das cercas de Madeirit.
Para se ter
uma ideia do tamanho do descaso, recentemente viu-se publicada, com
estardalhaço e stand no Shopping, a
programação de shows da Expocrato. Como sempre, o repertório é o mesmo do mesmo,
não ultrapassa as fronteiras do Forró Breganejo. Salvam-se algumas raríssimas
exceções, entre elas , as locais com os grandes : Fidelis, Fábio Carneirinho e
Rafael Belo Xote. A maior Festa do Sul Cearense, promovida pelo estado e
município, mais uma vez, exclui nomes outros que, simplesmente, perfazem o que
melhor se tem feito no Ceará, nas últimas décadas: Abidoral Jamacaru, João do
Crato, Luiz Carlos Salatiel, Paulinho Chagas, Cleivan Paiva, Luciano Breyner,
Amélia Coelho, Pachelly Jamacaru, Ibbertson Nobre, Dihelson Mendonça, Dudé Casado, isso para
citar apenas alguns. Mais uma vez, estão alijados da festa, feito cães
rabugentos. Produtores locais tentaram até, de última hora, enxertar um show
que envolvesse, num só dia e palco, todos esses músicos, com cachês simbólicos,
mas a sensibilidade por parte do município e do estado foi mínima. Que peguem a
cuia e vão mendigar pelas esquinas da vida!
Sempre acreditei
que, com toda a grade de shows terceirizada ( Essas licitações serão sempre tão
lícitas como deveriam ? ), os vencedores
da licitação escolherão, claro, artistas da efêmera arte midiática que lhes
traga o lucro almejado e certo. Não lhes cabe fazer política cultural, esta
sim, deveria ser uma precípua de prefeitos e governadores. Poderíamos, sim, no
Projeto da Reforma da Expocrato ter pensado numa Concha Acústica onde os shows
poderiam acontecer mais cedo com os artistas caririenses, com exposição de
fotografias e telas e a Feirinha Cariri Criativo ao derredor. Mas nem isso,
perversamente, é projetado. Acreditam, certamente, que esses shows poderão
prejudicar, de alguma maneira, os do espaço terceirizado e ( loucura absoluta!
) diminuir a arrecadação. Pode parecer até uma teoria conspiratória, mas
perfeitamente cabível quando, em anos anteriores, a polícia obrigava as
barracas com som alternativo a desligá-los, no momento em que começava os shows
tidos como principais, a mando da organização do evento. Que todos ouvissem
música ruim ou fossem para casa dormir !
Sei,
claramente, que nada mudará sem pressão política. A maior parte da população
pode parecer satisfeita e realizada com a Expocrato. Mas percebo, também, que
uma grande fatia, na qual me incluo, encontra-se expulsa da maior festa
caririense, que nada tem de multicultural e inclusiva. Esperava-se mais de
governantes que deveriam usar a Cultura como instrumento de elevação e
aperfeiçoamento do seu povo. Resta-nos a certeza de que daqui a alguns anos
mais, todos esses hoje poderosos políticos e governantes terão desaparecido
totalmente: viverão apenas em nomes de ruas e de instituições frias e
insalubres. O que restará, na bateia do tempo, serão os diamantes dos nossos
artistas mais significativos, esses mesmos que são torturados, sacrificados e
desprezados hoje, diuturnamente. Talvez
a razão de tudo seja justamente essa, uma questão típica de garimpagem: os
escolhos não conseguem entender o brilho das pepitas.
Crato,
17/05/19
2 comentários:
Excelente. Um grito de uma geraçåo semprevivo.
Uma turnê será imprescindível para todo o Brasil conhecer parabéns sempre
Postar um comentário