TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quarta-feira, 21 de agosto de 2019


A hora e a vez - Demóstenes Ribeiro (*)
Junho sempre me deixa comovido e faz lembrar muita coisa. Uma delas foi a mudança pra cidade, bem na onda do êxodo rural. Eu deveria estudar, havia o ginásio noturno, e durante o dia com os meus familiares tocaríamos a bodega.
Mas, não foi fácil. Na aula de português, ler um texto em voz alta era a maior tragédia. A professora não entendia porque eu tremia, suava, ficava pálido e gaguejava. A classe inteira caía na risada e finda a tortura do ditado, tudo voltava ao normal.
Bem ou mal, recebi o diploma. Veio Fortaleza e o científico, hoje segundo grau. A casa do estudante, a vida simples, o catre imundo, os fins-de-semana de tristeza e solidão. Com a turma do interior, às vezes passeava no centro e admirava a escada rolante do Romcy, aquele antigo supermercado. Repetidamente os colegas a enfrentavam e me gozavam porque nunca tive coragem de andar naquele negócio.

Vinham as férias na cidadezinha e as noites frias de julho. O parque de diversões, Jerry Adriani, a canção italiana e Io Che Non Vivo (senza Te)”. A mocinha de olhos azuis no carrossel de cavalinhos parecia gostar quando eu lhe olhava, mas nunca quis saber de mim – hoje, é viúva e avó.


Voltavam as aulas e a casa do estudante. Tempo de vestibular. Com a aprovação em Direito, mudei pra REU, a residência universitária. A vida melhorava um pouco, mas ainda era precária. A menina bonita, colega de turma e filha de deputado, era esnobe, fazia não me ver, sequer me cumprimentava. E eu sem conhecer o meu lugar, sofria em silêncio um amor platônico, muitíssimo apaixonado.
Enfim, terminei a faculdade e nos vinte e cinco anos de formatura, foi bom nos reencontrarmos. A abracei calorosamente e lhe surpreendi por ser juiz federal. Recentemente divorciada, lhe falei do sentimento antigo e terminamos num motel. Mas foi só aquela noite: o mundo dá muitas voltas, eu me senti vingado e não lhe vi nunca mais.
No geral, fui um vencedor, mas a velha escada rolante ainda me atormentava. Fortaleza mudou, o Romcy fechou e ela foi desativada. Hoje tem shopping centers com outras bem maiores.
Cansado de terapia e de psiquiatra, preparei a batalha e a vitória. Convidei o pessoal pra reviver os velhos tempos com uma comemoração no shopping Rio Mar. Veio a turma antiga da REU e da casa do estudante. Agora, empresários, médicos, engenheiros, advogados, gente bem sucedida, enfim.
No shopping, alguns ficaram junto a mim, dando força, e outros me aguardaram no topo da escada. Antes, dei uma boa gorjeta ao guarda, era meio-dia e, por um breve tempo, só eu poderia subir. Um, dois, três... Vai doutor!
Aquela gritaria, a escada em movimento e eu me senti outra vez na aula de português. Estava trêmulo, pálido e suando em bicas. Pra não cair, me acocorei no degrau que rolava e rolava acima por quase uma eternidade. Afinal, de cócoras, cheguei ao topo. E os colegas me levantaram entre palmas, vivas, assovios, é o maior...
Carregado nos ombros, entramos na churrascaria lotada, e o pessoal, no rodízio, perplexo e sem entender nada. Mas, cada um tem sua hora e sua vez. Assim, diz a estória em Augusto Matraga.

(*) Médico-cardiologista, natural de Missão Velha e residente em Fortaleza.

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