TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A GARGALHADA FINAL - Demóstenes Ribeiro (*)


Embora a sua família fosse considerada inteligente e um dos seus irmãos, importante advogado, ele, sequer sem o ensino médio, era frequentemente desprezado. No entanto, todos reconheciam a sua facilidade de expressão e intuição oratória, notadamente quando tomava umas cachaças.
Por isso, adorava ser o locutor da amplificadora local, onde a sua voz agradável consagrara o bordão “... senhoras e senhores ouvintes, pontualmente, seis horas. É a hora do Ângelus, e com esse prefixo musical, a difusora a Voz do Cariri – a sua D.V.C. -, acionando modernos equipamentos e potentes alto-falantes, transmite para toda a cidade e interior dos lares, as mais belas canções e os acontecimentos palpitantes da nossa comunidade. Na locução, Erivan e no controle de som, Francisco Pena!”
E ele tocava a vida, noticiando pelo microfone, aniversários, falecimentos, comerciais e propaganda política. Às vezes, surpreendiam as edições extras da D.V.C., prenunciadas pela “marcha fúnebre”, de Chopin, se alguém importante falecia, ou por uma melodia alegre em datas festivas familiares.
No entanto, ao se exceder na bebida, às vezes se atrapalhava. Entrou para o folclore local, a vez em que, bastante embriagado, ao anunciar o aniversário de uma criança, sobre o fundo musical “hoje é dia do seu aniversário, parabéns, parabéns. Fazem votos que vás ao centenário, os amigos sinceros que tens...” trocou o pai pela mãe, e disse solenemente “hoje, belíssimo dia, é o aniversário natalício do interessante garotinho Fernando Carlos. Nessa efeméride, seu pai, Cecília da Silva e a sua mãe, Chico da Silva, lhe oferecem esta linda melodia como prova de carinho e amizade.”
Porém, o que o fazia ainda mais feliz era discursar presencialmente e de improviso em comemorações ou fazer uma família inteira chorar, falando à beira do túmulo quando do sepultamento de alguém muito estimado.
Enquanto isso, a cidade seguia sua rotina monótona, mas violência e vingança sempre estiveram no ar e vez por outra sacudiam o lugarejo. Crimes de pistolagem, feminicídio, enforcamento, traição política, infidelidades conjugais e a expectativa por um ajuste de contas que viria cedo ou tarde, preenchiam o imaginário popular.
Para sempre lembrada, foi a briga entre três rapazes acontecida há mais de vinte anos. Antes, amigos e companheiros, uma discussão banal culminou com a morte estúpida de um e feroz inimizade entre as famílias. Depois, morreram os outros dois, e nos filhos de um deles, desde a tenra infância, plantou-se a maldição de que alguém mais deveria morrer, pelo simples parentesco com um dos mortos.
Assim, muitos anos depois, um senhor idoso – Emérson Menezes de Lucena - foi surpreendido por um jovem que, a sangue frio, lhe disparou vários tiros, numa morte que consternou a cidade.
No cemitério lotado, à beira do túmulo, Erivan, muito comovido, exaltava as qualidades do falecido, porém completamente embriagado, trocou o seu nome falando “que nessa tarde sombria, triste e pesarosa, quando a Porta do Cariri se despede do querido Emérson Fernandes de Oliveira, vítima de uma violência tão covarde...”
Ao ouvir essas palavras, outro Emérson, temido e odiado, o interrompeu bruscamente: “o que é isso, Vanzim, eu tou vivo aqui, bem atrás de você, não me mate não!” Por alguns segundos, tristeza e choro deram lugar a uma risada discreta e abafada, mas refeito o silêncio, veio do caixão uma sonora gargalhada macabra.
A multidão debandou em disparada e deixou sozinho, “Seu” Corrumbeque. O velho coveiro, benzeu-se três vezes, depressa sepultou o cadáver e por muito tempo não quis enterrar mais ninguém.

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(*) Dr. Demóstenes Ribeiro, médico-cardiologista, natural de Missão Velha, com atuação profissional e residência em Fortaleza-CE





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