TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Ramon




- O silêncio é uma rua de janelas fechadas - pensou em voz alta.


À luz da lua, avistou na areia branca da praia as imóveis caveiras de elefantes, restos encalhados de barcos de pesca. Lembravam as costelas de um paquiderme, desmanchando-se ao embate das ondas. Se a maré subia, naufragavam; se baixava, as proas pediam socorro.

Fazer o quê? O avô quisera assim.

- Os homens inventaram os cemitérios.

Ramon acendeu um cigarro e riu. Nunca contava os cigarros fumados, nem olhava as fotografias que ilustravam as embalagens, para não se amedrontar e desistir do vício. Um homem numa máscara de oxigênio. O Ministério da Saúde adverte: fumar provoca câncer de pulmão. A foto que mais o atemorizava era a de um cigarro com as cinzas arqueadas, sugerindo algo que baixou e não levantará mais nunca. O Ministério da Saúde adverte: fumar causa impotência sexual. Meninos desnutridos, mulheres grávidas, membros ulcerados. Ele mesmo perdera os dentes. Caíram por causa da infecção, um a um.

Como os barcos que o avô deixou encalhar na praia, depois que adoeceu e não podia se aventurar nas águas profundas.

- Nunca mais sairão à pesca.

As madeiras apodreciam, os tabuados finos soltavam-se das vigas, a maresia comia os ferros. Do jeito que se decompunham os elefantes mortos na savana. Primeiro, os caçadores arrancavam as presas de marfim. Depois, as aves de rapina devoravam os olhos, furavam o couro e comiam as vísceras. Por último, as hienas se banqueteavam com gorduras e carnes. Restavam os ossos, arreganhados para o céu, sem nenhum pudor. Iguaizinhos aos barcos.

Ramon não ligou para a metáfora do poema e riu alto. O silêncio é uma fileira de barcos arruinados. Alguém deixaria de se divertir com a imagem de caveiras de elefante, enfileiradas e silenciosas? Achou que era um gênio do humor, e riu até se engasgar com a nona taça de vinho. Tornou-se sério apenas quando acendeu outro cigarro. Sem querer, viu a foto de um menino raquítico.

Nunca visitara a África, onde os meninos desaprendiam a mastigar, porque não comiam. O Ministério da Saúde adverte: fumar durante a gravidez causa problemas ao feto. Ainda bem que ele não corria esse risco. Mais uma vantagem em nascer homem, os espermatozóides não sofrem desnutrição pelo tabagismo. Nem pelo álcool.

Encheu a décima taça e olhou através da janela. Era a única aberta na rua. A única com as luzes acesas e gente espreitando. Ele.

Do outro lado, a praia, os barcos que o avô deixara encalhar quando soube que estava morrendo. E o mar.

O avô lhe presenteara com um maço de cigarros, ao completar treze anos. Ensinou-o a desfazer o invólucro de celofane, a tragar e a expelir fumaça pelo nariz. Sempre fumaram juntos, até poucos dias antes do avô morrer de câncer de pulmão.

- Não acredito que isso faça mal.

Riram.

O avô contou sobre o único dia em que decidiu largar o vício. Pescava no mar alto. Não permitira que ninguém levasse cigarros na embarcação. Uma noite não suportou o desejo e deu ordens pra voltarem. Encontrou os botecos fechados. Bateu na porta de uma casa, pediu que lhe vendessem um maço. Pagava qualquer preço. Acendeu um cigarro e revoltou-se com a constatação de que uma coisa tão pequena o dominava. Jogou-o no chão e esmagou-o.

- Você é um homem letrado, mas o vício nos iguala - falou pra Ramon.

- É possível.

Mudos, os dois olhavam os barcos. Nos porões se desmanchando, nenhuma memória de peixes.

E o avô, de que se lembrava antes de morrer? Ele e Ramon amavam o silêncio acima de todos os bens. O silêncio que se segue a uma baforada, a fumaça pairando sobre as cabeças, como nuvens antes de uma tempestade. Em silêncio, todos os homens são iguais, como ruas de janelas fechadas.

Ronaldo Correia Brito


Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.
Escreveu Faca e Livro dos Homens.
Assina coluna na revista Continente.
Fale com Ronaldo Correia de Brito: ronaldo_correia@terra.com.br

2 comentários:

socorro moreira disse...

Eita! Tu escreves bem demais!

Fiquei mais atenta ao estilo do que ao gênero! Risos .

Dói tanto em mim ser fumante...que nem pensar no assunto, eu penso! Outro dia pedi ao meu Doutor(Zé Flávio) um remédio pra ajudar nesta minha vontade abstenente!Ele foi imediato! Mas o tabaco perdeu o taco! Bah...compulsivamente, eu fumei mais de um maço, procurando a lombrinha do cigarro, num pacote de ações, que na bolsa da saúde, todo dia é debitado. Droga! Ainda não aconteceu a minha liberação.Sou presa a essa chupeta, nem sei, se é por falta de beijos, pois eu fumo enamorada! Claro que não sou feliz, quando me flagram, pelos cantos marginais...É uma vergonha esse hábito ...esse cheiro já sem charme é mesmo "abestalhado"!
Ainda bem que nem todos, gozam o mérito do pecado!

Anônimo disse...

O Ronaldo nos surpreende com imagens cinematográficas neste pequeno conto.