TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE
sábado, 16 de agosto de 2008
Um movimento subterrâneo luta pela igualdade da mulher na igreja
"Em nome da Mãe, da Filha e da Espírito Santo. Deusa nossa, acolhe a nós, cristãs... Mãe nossa que estás no céu..." As teólogas feministas nos propõem inverter, subverter a linguagem de gênero da liturgia católica para que comprovemos a apropriação masculina da própria idéia de Deus realizada através dos séculos. Pensam que, de tanto representar o Altíssimo com figuras masculinas e de excluir a mulher dos estamentos do poder religioso, as hierarquias católicas acabaram "violando a imagem de Deus nas mulheres", apagando a parte feminina do Supremo Criador.
Poucas imagens podem ser tão obscenas em nossas sociedades católicas quanto a exposição pública de uma mulher nua pregada na cruz. E poucas coisas irritam tanto o Vaticano quanto o questionamento do papel atribuído à mulher na Igreja. "A ordenação das mulheres é o primeiro passo para recomeçar a comunidade de iguais que Jesus queria. A Igreja se empobrece clamorosamente pela carência de uma contribuição feminina mais plena e responsável", indica a freira María José Arana, antiga pároca da Congregação do Sagrado Coração, doutora em história e autora do livro "Mulheres Sacerdotes, Por Que Não?"
Há uma revolta feminista que é travada surdamente há décadas nas catacumbas da Igreja oficial, uma rebelião seguida clandestinamente em não poucos conventos, que o Monitum (advertência canônica oficial) editado há seis anos pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antiga Inquisição) e hoje papa, Joseph Ratzinger, não conseguiu silenciar nem as posteriores ameaças de excomungar quem participasse da ordenação de mulheres. A democratização-feminilização modificaria sem dúvida a visão interior e exterior da Igreja e desbarataria a trama vertical do poder: bispo, cardeal, sumo pontífice, de forma que a eleição do papa, ou papisa, não mais caberia apenas aos 118 homens purpurados cardinalícios reunidos em conclave.
Portanto, compreende-se que o recente livro de Carlo María Martini, "Colóquios Noturnos em Jerusalém", tenha tido o efeito perturbador da pedra atirada às águas doutrinárias estancadas. Figura de referência para as correntes reformistas, embora já condenado pelo papado, o cardeal convidou seus pares, príncipes da Igreja, a discutir o sacerdócio feminino, o fim do celibato obrigatório e a substituição da encíclica Humanae Vitae, que proíbe inclusive o uso do preservativo. São mensagens de esperança para essa outra Igreja de base, renovadora, que não se reconhece em sua hierarquia atual.
Mas, com exceção do presidente da Conferência Episcopal alemã, o arcebispo Robert Zollitsch, partidário da revisão do celibato, as propostas de Martini não obtiveram resposta além do silêncio do Vaticano e das hierarquias nacionais. Isso que as pesquisas mostram, também na Espanha, que onde a autoridade católica encontra escândalo e matéria de anátema os fiéis vêem aproximação de uma sociedade que aboliu a discriminação do sexo. É tão audaz a proposta de Martini em uma Igreja de templos abandonados, sacerdotes idosos e vocações escassas, composta em 75% por mulheres?
Não é preciso ser mulher e crente para constatar que as pregações e litanias, os cânticos e as preces que os fiéis católicos elevam ao céu surgem majoritariamente de gargantas femininas; que são as mãos de mulheres que cuidam da limpeza e do funcionamento dos templos: desde as flores e as toalhas dos altares até o ar-condicionado, passando pela coleta das esmolas e o cuidado dos hábitos sacerdotais. O que aconteceria se, como propõem algumas teólogas feministas, as mulheres decidissem não ir às igrejas até que se reconhecesse sua igualdade? Um olhar para as igrejas espanholas, transformadas em lares espirituais para a terceira idade, comprova essa avassaladora presença feminina. Segundo a Confederação Espanhola de Religiosos e Religiosas (Confer), em 31 de janeiro de 2007 havia na Espanha 18.819 religiosos e 48.489 religiosas.
Andrés Muñoz é um dos 8 mil sacerdotes, 22% do total, que vivem hoje na Espanha casados ou convivendo em casal. Tem 27 anos de casamento com Teresa Cortés, a mulher que hoje preside o Movimento para o Celibato Opcional (Moceop). Eles têm um filho de 25. "O mal não reconhecido da Igreja Católica é o autoritarismo, a falta de democracia interna e a rejeição à liberdade de pensamento", afirma. Sua mulher está convencida de que o celibato obrigatório é, antes de mais nada, um instrumento para o controle dos sacerdotes. Essa senhora de rosto suave e expressão decidida - "filha do inferno", a chamaram os membros de um programa de rádio -, pensa que a humanidade e as religiões contraíram uma grande dívida histórica com a mulher.
A aceitação do sacerdócio e do bispado feminino entre os protestantes e anglicanos deixa a Igreja Católica diante da pergunta de até quando poderá continuar ignorando o fato da emancipação feminina e da igualdade dos sexos. De quanto tempo vai precisar para mudar o olhar que os santos padres, desde santo Agostinho a santo Tomás, atiraram sobre a mulher, esse ser que, assim como Aristóteles, julgaram inferior, submisso, de natureza "defeituosa", incompleta, "imbecilitas", impura? Quanto ainda vão demorar para livrar a mulher do sentimento de culpa por ter entregado a maçã a Adão, para libertar-se inteiramente dos preconceitos que proibiam as mulheres de entrar nos tempos durante seus períodos de menstruação, ou simplesmente de tocar nos vasos sagrados? O machismo da sociedade também tem suas raízes na cultura cristã e continua vigente na idéia, exposta na primeira encíclica do papa Bento 16, de que a mulher foi criada por Deus "como ajuda do homem".
Casada, mãe de um filho, membro do Movimento para a Ordenação de Mulheres, uma iniciativa que já convocou dois congressos internacionais, Christina Moreira não tem ilusões sobre a evolução previsível de sua Igreja. "A última coisa que o papa fará será aceitar o sacerdócio feminino", prevê. "Desde que o Sínodo da Igreja da Inglaterra (anglicana) aceitou a ordenação de mulheres, em 11 de novembro de 1992, muitos fiéis revoltados com essa decisão estão passando para a Igreja de Roma", ela explica. Está convencida de que o cisma anglicano vai reforçar o pólo conservador do Vaticano. "Eles não gostam que as meninas comecem como coroinhas porque sabem que algumas terminarão aspirando ao sacerdócio", aponta Rosa de Miguel, outra mulher de vocação sacerdotal que diz se sentir "com as asas cortadas e como uma filha abortada da Igreja".
Depois de uma experiência religiosa muito intensa - "quando você é homem lhe dizem que tem vocação; se for mulher, que está neurótica ou que vá ser freira" -, Rosa decidiu mergulhar em sua profissão e se distanciar. Cansadas de sofrer, muitas outras acabaram suplicando a Deus que não as chame mais. Clama até o mais agnóstico dos céus que o Código de Direito Canônico, renovado em 1983, afirma que só o homem pode ser leitor das Escrituras ou acólito.
Os bispos, os cardeais e o papa acreditam verdadeiramente que as novas gerações de mulheres aceitarão submissamente um lugar subalterno na Igreja, por mais que ultimamente venham pela mão dos movimentos mais fundamentais? A ausência de uma perspectiva razoável de evolução e o conservadorismo dos bispos que dominam a Conferência Episcopal Espanhola desesperam boa parte da militância cristã reformista, majoritariamente de esquerda, assim como os religiosos e sacerdotes mais comprometidos com a renovação doutrinária.
Na intricada associação Redes Cristãs, que reúne cerca de 150 coletivos sob o lema comum "Outra Igreja é possível", as feministas católicas mais irreverentes, que em 8 de março se manifestam ao grito de "Se já temos duas mamas, para que queremos um papa?", se encontram com outras que evitam atitudes desrespeitosas. Embora o temor das represálias esteja presente, particularmente nas freiras e professoras de religião, a principal razão é evitar se desligar de uma congregação educada na obediência cega à hierarquia. "Colocar-se à margem representaria deixar a Igreja nas mãos dos Legionários de Cristo", raciocina Pilar Yuste, 44 anos, catedrática de teologia e professora de religião. "Apesar de não querermos cismas, devemos nos rebelar contra as estruturas antidemocráticas da Igreja", indica Teresa Cortés.
A brecha que as separa da atual hierarquia é tão profunda que os grupos mais radicais atuam à margem da Igreja oficial. Suas missas alternativas se desenrolam no fio da legalidade eclesiástica ou em clara ilegalidade. Alteram o rito litúrgico em busca de maior espontaneidade e liberdade, consagram pão e vinho normais em vez das hóstias de pão ázimo (sem levedo) e do vinho de missa, e também não é estranho que algumas dessas missas sejam oficiadas por mulheres que assumem por sua conta e risco a tarefa de consagrar, desafiando a pena de excomunhão. O vendaval conservador das últimas décadas desconcertou sobretudo as freiras e as católicas seculares que, animadas pela mensagem de abertura do Concílio Vaticano II (1962-65), começaram a se aprofundar nos assuntos teológicos, acreditando que a reforma resgataria a mulher de seu papel secular subalterno na Igreja.
E essas mulheres, peritas teólogas, percorreram seu caminho, descobriram muitas coisas para se conformar com o argumento curioso - a Igreja do século 21 transfere seu machismo ao próprio Jesus Cristo - de que não é possível ordenar as mulheres porque o Salvador estabeleceu que os 12 apóstolos fossem homens.
Do ponto de vista teológico, porém, não há um empecilho dogmático que proíba o celibato opcional ou a ordenação da mulher. De fato, os apóstolos eram casados e parece igualmente comprovado que na Igreja primitiva houve diaconisas e presbíteras, mulheres consagradas. As historiadoras religiosas se empenham em obter argumentos para demonstrar que a teórica impossibilidade de ordená-las sacerdotes não é uma verdade revelada, mas sim, como ocorre no islamismo e no judaísmo, produto da interpretação masculina da história ao longo de séculos de marginalização social da mulher.
A esta altura, no entanto, os subterfúgios dialéticos encontram já cansadas muitas dessas católicas que exigem que a hierarquia seja coerente com a igualdade. Sua mensagem é que a Igreja Católica perderá as mulheres, como já perdeu os intelectuais e os operários. Elas, que são as que amam a Deus em maior número, já não aceitam que o sexo masculino atribuído ao Supremo Criador sirva para perpetuar a servidão e a submissão secular da mulher. É que, a não ser que se insulte a condição feminina, não há resposta justificada possível para a pergunta: "Mulheres sacerdotes, por que não?"
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário