TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Vovô Natalino e Natal de Trevas em Matozinho


A notícia chegou em Matozinho ainda pela manhã, quando os burros dos leiteiros ainda cruzavam as ruas, enchendo os bules, de porta em porta. A cidade ficou consternada. Padre Andrelino falecera na capital. Fora pároco de Matozinho , por uns onze meses , em substituição ao Padre Arcelino que adoecera gravemente . A tristeza que se abateu sobre a Vila tinha muitas razões para se multiplicar. Andrelino mal varara os quarenta anos e, na sua passagem meteórica por Matozinho, tinha se irmanado tanto com a cidade que se tornara um matozense honorário, desses que nem precisam receber o título na Câmara Municipal. Por polêmicas ações do seu apostolado, terminara afastado da paróquia e, depois, tido por louco, soube-se ter sido interno em hospital psiquiátrico na capital. O povo nunca se conformou com o triste destino do nosso Arcelino , ainda mais agora quando se divulgou, por baixo dos panos , o motivo do falecimento : suicídio por enforcamento. Caiu, por sobre a cidade, um clima pesado, como todos se sentido atormentados por um novo pecado original. Parecia impensável o trágico fim do sacerdote. Logo ele? Tão alegre , sempre com um sorriso pendente dos lábios, tão repleto de esperanças e idéias novas ! Tão dinâmico e confiante na possibilidade de mudar o curso das coisas e tornar o mundo mais respirável! Por que desistiu de forma tão trágica e categórica?

As rodinhas de praça, as mesas do Bar do Giba e a assembléia da Botica de Janjão até que tentaram trazer uma resposta. As versões, no entanto, são desencontradas e múltiplas , passeiam pelo terreno do homicídio, da psiquiatria, da terapêutica errada e até de uma suposta trama envolvendo grupos de comerciantes e sacerdotes no sentido de por fim à vida dele. Quem sabe , o leitor, não poderia dar uma ajudazinha em desvendar o enigma?

Andrelino assumiu a paróquia de Santa Genoveva e, rapidamente, percebeu-se que era um padre diferente. Criou um Projeto chamado “A Deus o que é de Deus”, administrado pelos próprios diocesanos. Arrecadavam donativos e óbolos que eram doados aos mais carentes, sem qualquer interferência da Diocese. Os administradores descontavam apenas um pequeno valor para manutenção do sacerdote e da Igreja. Acabou com as procissões intermináveis, afastou as beatas do templo e pediu-as se envolverem em movimentos sociais sob pretexto de que ajudar aos mais desfavorecidos já era uma oração. Dispensou, ainda ,as confissões, pedindo aos fiéis que se confessassem diretamente com Deus e suas consciências. Proibiu o corte anual de árvore para montar a bandeira da Santa Genoveva na Festa do Pau da padroeira, aquilo era uma agressão à natureza: montem em cano de PVC! Acabou, também, com as regalias que tinham os matozenses mais ricos: missas domésticas, encomendações especiais, concelebrações em aniversários e solenidades. Vários imóveis doados para Santa Genoveva foram vendidos também , com fins de ajudar às vítimas da inundação do Rio Paranaporã. Cristo não faria isso, perguntou o sacerdote ? Ou ele preferiria ser latifundiário e assistir ao sofrimento e abandono do seu povo ?

No entanto, a gota d´água que entornou o copo do Pe Andrelino, veio no Natal. Taí um consenso , arrancado das rodinhas de bar, praça e botica. É que as mudanças propostas foram enormes, se comparadas aos Natais da tradição. Andrelino brigou com o prefeito Sinderval Bandeira, pois esse criara o que ele chamou de “Natal de Trevas”. Nenhuma iluminaçãozinha na cidade, para lembrar a data, era demais! Em plena época de luzes da China, aquilo era inadmissível! Depois, Andrelino pediu a todos que construíssem árvores de Natal com espécies da própria região : pau d´arco, faveiras, timbaúbas, coração de negro. Pinheiro e Cipreste não tem nada a ver com Matozinho , minha gente ! E mais, não cortassem as árvores que aquilo era uma afronta à vida e a Deus. Desbancou, também, a figura do Papai Noel, um velho broco e cego que só avista criança rica e mais: anda num trenó, puxado por umas tal de rena, no meio da neve. Quem já viu esse tipo de condução? Quem já viu neve? Quem conhece rena, meu povo ? Pode um desgraçado desse vir bater num lugar seco como Matozinho? Mandou buscar, então, uma figura em barro construída por Zé do Carmo, um artesão de Goiânia em Pernambuco, chamada de Vovô Natalino, com cara de nordestino e olhar afável e carinhoso: a partir de hoje, esse é nosso Papai Noel ! O padre, ainda, acabou com o tal de amigo secreto: a partir dali todos os amigos seriam visíveis e declarados. E mais: pediu ( para desespero dos comerciantes )para que a troca de presente cessasse, que aquilo não era coisa de Deus. Trocassem por alimentos e distribuíssem com os pobres, aquilo sim era bem mais condizente com o espírito de Natal. Andrelino lembrou ainda do falso clima de solidariedade quase compulsória desse período. Que as pessoas se tornassem caritativas, mas com espírito libertário: lutassem para que um dia a caridade já não fosse necessária e se substituísse por justiça social. Pediu ainda que a ceia fosse servida na Praça da Sé, numa mesa enorme, lembrando que todos somos irmãos e devemos dividir a mesma mesa. E mais: nada de Panetone, de uvas, de Passas , de Nozes, de vinhos. Vocês acham que foi isso que Cristo comeu na manjedoura? Tragam à nossa mesa o nosso maná do dia a dia : passa-raivas, sequilhos, quebra-queixos, muncunzá, macaúbas, araticum, siriguelas e aluá. É com esse maná que devemos regar o nosso Natal.

O Natal de Trevas , dizem todos, foi o mais iluminado de Matozinho. Logo depois, sabe-se lá porque, Andrelino foi afastado e depois interno no hospício. Aos que lamentaram o enforcamento de Andrelino, alguém lembrou que aquilo nada tinha de estranho: o próprio aniversariante , autor de tantas idéias parecidas, não fora crucificado ? Não era apenas a mesma história que se recontava?

J. Flávio P. Vieira

2 comentários:

Maurício Tavares disse...

Zé Flávio Só agora peguei o livro que vc mandou pra mim. Estou em Fortaleza pra passar o natal com meus pais. Logo que chegue em Salvador vou ler seu livro. Ele está bonito e bem editado. Um abraço.

jflavio disse...

Grande Maurício!
Legal que vc tenha recebido.Na verdade terminou por ser um trabalho coletivo: cantores, compositores e músicos caririenses envolvidos.Sem falar no trabalho de Reginadlo Farias que é um livro à parte.Felizes Festas para vc e a família !