De há muito meus lábios não se abrem para fazer, contrito, uma oração
ajoelhado em um banco de igreja ou mesmo quando me encontro em casa,
sozinho, de braço dado com as minhas angústias e minhas aflições. Faz
tanto tempo que não entabulo uma conversazinha com Deus, a sós, pedindo
ajuda, tirando minhas dúvidas, que são muitas, ou mesmo para agradecer,
genuflexo, as pequenas e grandes graças que tenho recebido pela vida
afora. Sim, há vários momentos em que meu ateísmo vacila e como a Torre
de Pisa no meio de um terremoto, balança, balança, balança, mas não cai
de todo. O Deus, no qual por muitas vezes creio e socorro suplico, é
bastante diferente Daquele ou Daqueles em que as outras pessoas costumam
acreditar. Ai de mim, que não perco essa tola mania de querer ser
sempre original. Do meu Deus não tenho um pingo de medo sequer, mas um
amoroso respeito e com todo o respeito, Senhor, igual ao que eu sentia
por meu pai. O meu Deus também não me ameaça com os mais terríveis
castigos nem me tiraniza com ordens de um cruento ditador. Deixa que eu
cultive as minhas opiniões, embora eu pense que Ele considere algumas
delas estapafúrdias. Sempre que converso com Ele, parece até que estou
batendo um papo descontraído com um velho e querido amigo, como creio
que devem ser O Criador e sua criatura.
E quando conversamos,
meu Deus e eu, jamais Ele me fala em céu ou inferno, em graças e
castigos, em fieis e infiéis, em hereges e santos, inocentes e culpados.
Nosso assunto preferido é sempre a bondade que reside no fundo da alma
de cada ser humano e que nos faz ser verdadeiramente humanos. O meu
Deus, além disso, é dotado de um incomensurável senso de humor e dá
divinas gargalhadas com o que se comenta a respeito Dele. Todos estão
certos e todos estão errados, já que sou, por definição, o Indefinível.
Assim Ele me fala, me piscando o olho e com um sorriso maroto no rosto
divinal. Por vezes, Ele assume a aparência de um velho. Por vezes, a de
um garoto, numa espécie de brincadeira somente permitida aos seres
onipotentes e oniscientes, se desenhando em novas formas no esculpir das
nuvens. E aproveitando dessa intimidade que Ele me concede, como sei
que concederia a qualquer outro, fiz ao Senhor alguns poucos pedidos, na
ansiosa espera de me serem concedidos e que tornarão a minha existência
mais leve e mais aliviada das chatices do dia a dia e às quais todos
nós estamos indefesamente sujeitos, seja lá quem formos ou deixemos de
ser.
Livrai-me, Senhor, dos que ferem a espontaneidade
anárquica do botequim, querendo impor regras e limites burocráticos aos
seus frequentadores, insistindo em filosofar a sério sobre mulher,
futebol e vida alheia. Pois o botequim é sinônimo de espontaneidade, do
imprevisível, do inusitado, do quando menos se espera é que acontece.
Livrai-me, Senhor, dos que, ao invés de contarem piadas, “causos” e
lérias, teimam em discutir política com acirrado fanatismo ideológico.
Livrai-me, Senhor, da presença dos falsos amigos, esses Judas do afeto,
esses fariseus do bem-querer. Livrai-me, Senhor, dos falsos pastores,
que falam Teu Santo Nome em vão e cujo rebanho nada mais é do que a
salvação da lavoura. Do pastor, é claro. A todos eles, os que enganam e
traem a boa fé do semelhante, castigai-os, Senhor, com uma mulher
estabanada, que fale mais que o locutor do Jóquei Clube. E, ao mesmo
tempo, Senhor, perdoai-me por pedir o sofrimento para meu semelhante.
Livrai-me, Senhor, do imposto de renda, do bolso vazio, do emprego
perdido, da firma reconhecida, dos credores inoportunos que tocam a
campainha pela madrugada, nos roubando o sono e a esperança. Livrai-me,
Senhor, da fila dos bancos, dos juros do cheque especial e do cartão de
crédito, da promissória vencida, do salário atrasado, das saidinhas
bancárias, que os bandidos não dão trégua, Senhor. Por via das dúvidas,
Senhor, livrai-me precipuamente das pragas de ex-mulher rancorosa, que
são piores do que praga de mãe e atormentam os infelizes pela vida
afora.
Dos maus poetas, Senhor, livrai-me urgentemente, que
deles a poesia quer distância por uma questão de sobrevivência.
Livrai-me, Senhor, do sexo feito às pressas, num simulacro de paixão.
Livrai-me, Senhor, das pobres e tristes criaturas castas, que odeiam o
próprio corpo e seus desejos e para quem Deus tornou-se sinônimo
perfeito de mortificação e de martírio, livrai-me, Senhor, para todo o
sempre. Fazei com que eles recuperem a alegria de viver. Livrai-me,
Senhor, dos assassinos de árvores, que trucidam o verde cinturão de
Fortaleza e a transformam num deserto de cimento armado por onde os
hunos contemporâneos passeiam as suas patas. Livrai-me, Senhor, dos
políticos safados, dos padres de passarela, dos juízes marreteiros, das
baratas, das traças, dos cupins que infernizam o existir daqueles que
amam os livros. Livrai-me, Senhor, das desilusões paternas e da ideia
besta de que os filhos nunca crescem. Das mulheres que não sabem
cozinhar, nem fazer cafuné e caldo de caridade, Livrai-me, Senhor, pelo
amor de Deus. Livrai-me, Senhor, de todos os relógios que me escravizam
ao tempo. E se não for pedir muito, Senhor, livrai-me jamais dessa
capacidade infinita de sonhar e que me faz sublimemente humano, à Vossa
imagem e semelhança..
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