TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Negando fogo



O Cabo  era um pequeno distrito próximo à Matozinho. Um arruadozinho de pouco mais de trinta casas dispostas de forma pouco regular que se foram amontoando pouco a pouco,  em longos e longos anos. Um dia os viventes daquele oco de mundo  tinham sido moradores da Fazenda do Coronel Serapião Garrido.  Com a viagem derradeira do coronel, a fazenda terminou rateada por muitos herdeiros que foram paulatinamente se desfazendo de suas terras. O fragmento onde hoje se situa o Distrito chamado de “Cabo”  comprara-o  um policial da região chamado Cabo Altino que findou seus dias ,tragicamente, assassinado por um marido ciumento. Como partiu prematuramente, não havia deixado descendentes e as terras , por usucapião, findaram nas mãos dos antigos moradores da época ainda de Serapião. Em homenagem ao policial legaram-lhe o nome de “Cabo Altino” que, com o tempo, por lei do menor esforço, recaiu num simples “Cabotino” e, finalmente, talvez pela feiúra do epíteto,  virou, por fim:  “Cabo”.
                        Passaram-se os anos e o arruadozinho permanecia exatamente o mesmo , motivo de inúmeras chacotas em Matozinho. Dizia-se que ali só se abria nova rua quando caía uma casa. Apelidaram de “Cabo”  um anão da Vila.   E tome-lhe potoca: “Mais atrasado que o Cabo”! “Esse menino num cresce não, é empererecado danado , parece o Cabo”! “O Cabo  é tão atrasado que não muda nunca de patente: não sobe nem prá sargento!” Todos estes chistes precisavam ser ditos à boca miúda, sob pena de algum cabense infiltrado, tomar as dores e resolver a pendenga à força de facão rabo-de-galo.
                        Pois bem, situado bem nosso arruado, voltemos à nossa Matozinho que vivia, naquele momento, em período eleitoral, nas vésperas de eleições para deputado, senador e presidente. Ao contrário do pleito para escolha de prefeito e vereador, aquele não dava muito solavanco nos ânimos matozenses, não ! A coisa permanecia meio morna, meio em banho-maria. Talvez, por isso mesmo, Giba,  o dono do Bar mais famoso da Vila,  estivesse, naquele dia preocupado com razões outras bem distantes de Chapas e Urnas. É que havia combinado  , desde a semana anterior, com o velho Atanásio Jovelino,  para mandar emprestado o jumento de lote de Giba para o distrito do Cabo, com o fito de cobrir algumas éguas .  O dono do bar estava meio agoniado,  primeiro porque se tratava de dia de Feira em Matozinho e, depois, porque mandara  Tõin Catingueira  , seu fiel escudeiro numa fazendola nas cercanias da Vila, na dura missão de pegar o jerico e trazer para cidade. Dali, Zezé da D20, um pegador de frete, já havia lavrado contrato para levar o jumento até às mãos de Atanásio. E aí vem a segunda razão do vexame de Giba:  Zezé havia combinado a viagem para as oito da matina, já passara duas vezes no Bar e, até aquele momento, mais de onze , Tõin Catingueira, que tinha fama de lerdo e macio, não tinha aparecido com a encomenda.
                        Pois bem, para que se entenda bem a história, neste momento, entra em cena uma outra trama. Giba nem lembrava,  mas, na semana anterior, um primo o havia escrito da Capital, pedindo sua ajuda num empreita.  É que um amigo dele era candidato a Deputado Estadual e estava indo para Matozinho na semana seguinte, com fins de fazer campanha e carrear alguns votos. O primo havia recomendado Giba como cicerone:
                        --- Dono de Bar, Giba conhece todo mundo! Ele vai te levar aos melhores cabos eleitorais da região !
                        No azáfama do dia a dia, Giba já nem mais lembrava o pedido do primo. Pois não é que o homem resolveu chegar exatamente naquele dia : em meio à feira, imprensado entre o jumento, Zezé e Catingueira? Apresentou-se ao dono do botequim e este foi muito cordial. Pediu-lhe apenas um tempinho e ficou naquela aflição danada, aguardando a chegada de Tõin que não vinha e a insistência periódica de Zezé que, passando por ali já pela quarta vez, tinha ameaçado cancelar o contrato.
                         O candidato esperou um pouco, enquanto conversava com a clientela matutina do bar: os bêbados mais inveterados e que precisavam tomar a primeira,  para parar aquela tremedeira . Ante o stress de Giba , andando de lado a lado e resmungando :
                        -- Como é que pode uma coisa dessas ? Tõin não chega! Lerdo ! Abestado ! Tratante !
                        O candidato imaginou, com seus santinhos, que a figura aguardada com tanta ansiedade só podia ser um importante cabo eleitoral da região. Tõin que vinha tangendo o jumento de lote, por sua vez, sabia apenas quem alguém transportaria o bicho até o distrito do Cabo e, ciente do atraso,  preparava-se para o esporro do patrão.
                        Quando apontou, por fim, nosso vaqueiro na extremidade da rua, um Giba ,já suando em bicas,   gritou:
                        -- Finalmente  o pomba-lesa do Catingueira chegou !
                        Ao ouvir o abre-te-sésamo , o deputado,  acreditando tratar-se do detentor de uma mina de votos, saiu correndo em desabalada carreira e abraçou nosso vaqueiro efusivamente:
                        --- Bem vindo Catingueira ! Ainda bem que você chegou , rapaz!
                        Catingueira, meio confuso, imaginou que aquele era o homem do frete e que ia transportar nosso jegue até à lua de mel em terras de Atanásio ! Dirigiu-se diretamente ao candidato e entregou-lhe o jumentão de lote que, animado, excitado,  já pressentia as futuras noites de núpcias:
                        --- Pronto ! Taqui o que o sinhô tava esperando! Vossimicê  já pode levar esse jumento até o cabo !
                        O deputado, ante a ameaça , afastou-se rápido, ainda ouvindo as ritmadas batidas do falo jeguiano no bucho,  e negou fogo :
                        --- Que conversa é essa, seu Catingueira? Não meta as pernas pelas mãos não, homem de Deus ! Quem leva jumento até o cabo é eleitor e não político !  Tesconjuro, desgraçado !

J. Flávio Vieira

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