A s cidades, talvez por serem do
sexo feminino, guardam no closet um sem número de vestidos que os vai
escolhendo, propiciamente, conforme a ocasião. Há as roupas de gala para os ensejos festivos, os uniformes mais
recatados para os dias de labuta, as fardas para os momentos mais tensos , os
hobbies para os instantes mais caseiros. À noite, quando passeiam pela
periferia, as cidades, em feitio de baile carnavalesco, gostam de envergar
fantasias e máscaras e se esbaldam, na surdina, que afinal ninguém é de ferro!
E são em geral os poetas, os boêmios, os sátiros que ajudam as cidades a se
travestirem para o corso, quando os
olhos oficiais da vila já ressonam. As fotografias registram as cidades com as
vestes mais chiques e burocráticas, os trapos do bloco de sujos, em geral, passam despercebidos das câmeras, dos flashes
e da história.
O
Crato sempre foi muito afeito às fantasias de carnaval e trajou-as, sempre, com
quase igual freqüência com que portou os vestidos longos e seus
penduricalhos. E aqui tivemos estilistas carnavalescos do mais fino jaez :
Chico Soares, Melito, Zé de Matos, Zé Gato, Abidoral Jamacaru, Zé Ribeiro,
Chico Piancó , Júlio Saraiva, isso para falar apenas de alguns nomes mais
icônicos. Pois bem, hoje , vou relembrar uma das mais irreverentes figuras do
Cariri . Chamava-se Pio Carvalho e nasceu em terras de Frei Carlos em 1877. Fez
a última viagem, já velhinho, em 1963. Foi poeta , chegou a escrever um livrinho que
ainda vi na biblioteca do meu avô materno, onde mesclava poemas e histórias bem
humoradas.
No primeiro quartel do século passado ,
espírito aventureiro, saiu mundo afora com outro personagem presepeiro da
cidade, Teófilo Siqueira, que era
Boticário aqui, na Rua do Fogo. Pio receitava e Teófilo, que já levava os
remédios acondicionados na carga de um
burro, aviava as receitas, mato adentro. Rápido no gatilho, Pio tinha um
finíssimo senso de humor. Pena que a maior parte das suas tiradas tenham se
perdido, possivelmente, por conta do alto teor de pimenta que carregavam. Vou
lembrar algumas neste artigo que me chegaram de língua em língua , deixo-as
aqui registradas , antes que a fuligem do tempo as soterre.
Na
famosa viagem empreendida por Pio e Teófilo, como bandeirantes, levando uma medicina
rudimentar para o interior do Nordeste, consta que , um dia, pediram guarida na
casa de um matuto. À noite, sabe-se Deus como, Teófilo saiu sorrateiramente e
terminou bolinando uma das filhas do hóspede que dormia numa rede , num quarto
próximo. Houve uma gritaria danada e Teófilo, descoberto, fingiu que era
sonâmbulo. No outro dia, já novamente na estrada, Pio que não engoliu a versão,
quis saber a verdade. O boticário desconversou e disse que estava com sede e
tinha ido procurar a quartinha, na cozinha e errara o caminho. Pio , incrédulo,
retrucou:
---
Conversa fiada, Teófilo ! Gargalo de quartinha não tem cabelo, não !
Rapazinho Pio Carvalho tinha um retrato oficial para
ofertar às namoradas que se sucediam. Escrevia atrás, apaixonadamente : “
Fulana, receba este retratinho como prova do meu amor por ti!” Quando o romance
terminava, Pio colava um papel atrás da fotografia e esperava um novo amor.
Encetado novo namoro, repetia, agora já no papel novo, a mesma frase, trocando,
claro, o nome da antiga amada, pela nova conquista. Passados os meses, papel
após papel colado e sobreposto atrás da foto, a fotografia começou a aumentar
muito o volume. Tanto que um dia, Pio já escreveu :
--“Querida
Eufrázia, receba este tijolinho, como prova do meu amor por ti. Do Teu, Pio” .
Do
livro de Carvalho, que ainda folheei, lembro-me de uma história bastante
interessante. Chegara um circo novo numa pequena cidade do interior, quem sabe,
Matozinho ? Como sempre, os artistas saíram em cortejo fazendo propaganda do
espetáculo. Visitaram a casa de autoridades e , depois, foram até à igreja
visitar o padre e pedir a bênção, uma vez que iam instalar o circo ali na Praça
da Matriz e temiam algum protesto da igreja que não gosta de concorrência.
Entraram dois malabaristas, no templo, plantando bananeira e foram, assim,
falar com o vigário, artisticamente, levando-lhe alguns ingressos de cortesia
para abrandar-lhe o coração. Nisso ,
entraram duas beatas na igreja, que não sabiam da novidade e se achegavam para
a confissão da tarde. Ao verem os dois homens de ponta cabeça , uma se assustou
e avisou à outra :
---
Comadre, vamos voltar já ! A penitência do
padre hoje tá prá lascar e , com um calor danado desses, nós num viemos
prevenidas , não !
J. Flávio Vieira
3 comentários:
Fantástico. Adoro este blog. Tenho assinado em meu feedreader. E este foi um dos melhores posts!
Grato pela força ! Revolvendo as cinzas do Crato antigo e seus personagens (in)esquecidos.
Grato pela força ! Revolvendo as cinzas do Crato antigo e seus personagens (in)esquecidos.
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