TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Pio



A s cidades, talvez por serem do sexo feminino, guardam no closet um sem número de vestidos que os vai escolhendo, propiciamente, conforme a ocasião. Há as roupas de gala  para os ensejos festivos, os uniformes mais recatados para os dias de labuta, as fardas para os momentos mais tensos , os hobbies para os instantes mais caseiros. À noite, quando passeiam pela periferia, as cidades, em feitio de baile carnavalesco, gostam de envergar fantasias e máscaras e se esbaldam, na surdina, que afinal ninguém é de ferro! E são em geral os poetas, os boêmios, os sátiros que ajudam as cidades a se travestirem para o corso,  quando os olhos oficiais da vila já ressonam. As fotografias registram as cidades com as vestes mais chiques e burocráticas, os trapos do bloco de sujos, em geral,  passam despercebidos das câmeras, dos flashes e da   história.
                                               O Crato sempre foi muito afeito às fantasias de carnaval e trajou-as, sempre, com quase igual  freqüência com que  portou os vestidos longos e seus penduricalhos. E aqui tivemos estilistas carnavalescos do mais fino jaez : Chico Soares, Melito, Zé de Matos, Zé Gato, Abidoral Jamacaru, Zé Ribeiro, Chico Piancó , Júlio Saraiva, isso para falar apenas de alguns nomes mais icônicos. Pois bem, hoje , vou relembrar uma das mais irreverentes figuras do Cariri . Chamava-se Pio Carvalho e nasceu em terras de Frei Carlos em 1877. Fez a última viagem, já velhinho,  em 1963.  Foi poeta , chegou a escrever um livrinho que ainda vi na biblioteca do meu avô materno, onde mesclava poemas e histórias bem humoradas.
                                                No primeiro quartel do século passado , espírito aventureiro, saiu mundo afora com outro personagem presepeiro da cidade, Teófilo Siqueira,  que era Boticário aqui, na Rua do Fogo. Pio receitava e Teófilo, que já levava os remédios acondicionados na carga  de um burro, aviava as receitas, mato adentro. Rápido no gatilho, Pio tinha um finíssimo senso de humor. Pena que a maior parte das suas tiradas tenham se perdido, possivelmente, por conta do alto teor de pimenta que carregavam. Vou lembrar algumas neste artigo que me chegaram de língua em língua , deixo-as aqui registradas , antes que a fuligem do tempo as soterre.
                                               Na famosa viagem empreendida por Pio e Teófilo, como bandeirantes, levando uma medicina rudimentar para o interior do Nordeste, consta que , um dia, pediram guarida na casa de um matuto. À noite, sabe-se Deus como, Teófilo saiu sorrateiramente e terminou bolinando uma das filhas do hóspede que dormia numa rede , num quarto próximo. Houve uma gritaria danada e Teófilo, descoberto, fingiu que era sonâmbulo. No outro dia, já novamente na estrada, Pio que não engoliu a versão, quis saber a verdade. O boticário desconversou e disse que estava com sede e tinha ido procurar a quartinha, na cozinha e errara o caminho. Pio , incrédulo, retrucou:
                                               --- Conversa fiada, Teófilo ! Gargalo de quartinha não tem cabelo, não !
                                               Rapazinho  Pio Carvalho tinha um retrato oficial para ofertar às namoradas que se sucediam. Escrevia atrás, apaixonadamente : “ Fulana, receba este retratinho como prova do meu amor por ti!” Quando o romance terminava, Pio colava um papel atrás da fotografia e esperava um novo amor. Encetado novo namoro, repetia, agora já no papel novo, a mesma frase, trocando, claro, o nome da antiga amada, pela nova conquista. Passados os meses, papel após papel colado e sobreposto atrás da foto, a fotografia começou a aumentar muito o volume. Tanto que um dia, Pio já escreveu :
                                               --“Querida Eufrázia, receba este tijolinho, como prova do meu amor por ti. Do Teu, Pio” .
                                               Do livro de Carvalho, que ainda folheei, lembro-me de uma história bastante interessante. Chegara um circo novo numa pequena cidade do interior, quem sabe, Matozinho ? Como sempre, os artistas saíram em cortejo fazendo propaganda do espetáculo. Visitaram a casa de autoridades e , depois, foram até à igreja visitar o padre e pedir a bênção, uma vez que iam instalar o circo ali na Praça da Matriz e temiam algum protesto da igreja que não gosta de concorrência. Entraram dois malabaristas, no templo, plantando bananeira e foram, assim, falar com o vigário, artisticamente, levando-lhe alguns ingressos de cortesia para abrandar-lhe o coração.  Nisso , entraram duas beatas na igreja, que não sabiam da novidade e se achegavam para a confissão da tarde. Ao verem os dois homens de ponta cabeça , uma se assustou e avisou à outra :
                                               --- Comadre, vamos voltar já  ! A penitência do padre hoje tá prá lascar e , com um calor danado desses, nós num viemos prevenidas , não !

J. Flávio Vieira

3 comentários:

deniac disse...

Fantástico. Adoro este blog. Tenho assinado em meu feedreader. E este foi um dos melhores posts!

jflavio disse...

Grato pela força ! Revolvendo as cinzas do Crato antigo e seus personagens (in)esquecidos.

jflavio disse...

Grato pela força ! Revolvendo as cinzas do Crato antigo e seus personagens (in)esquecidos.