As
linhas haviam sido escritas, em letra
artística, com uma pluma de pássaro :
nada mais adequado para palavras de amor
! Fluidez, leveza, horizontes infinitos
de passarinho. Nela, um apaixonado Dom Alfonso de Vargas y Montes dirigia-se à sua querida Doña Maria de Sierra, com a aflição dos amantes, em frases como : “É por vossa mercê que me ardo de amores...”
e “nasci para servir a vossa mercê e não para mandar”. Agradecia
por alguns favores recebidos e
demonstrava, claramente, que o amor se fazia correspondido, pois D.
Alfonso elogiava, cortesmente, a letrinha da amada em correspondências
anteriores. Citava ainda duas outras
pessoas que, certamente, deviam conhecer a relação secreta: “
Pepita, quando te beijar, te dará dois beijos, um por mim e outro por Don Juan”.
Terminava a missiva de forma esperançosa : “Por
haver escrito com pressa, não explico melhor meu afetuoso amor por vossa mercê.
Para manhã, sendo Deus servido, espero resposta”. Datava D. Alfonso sua correspondência : “29
de Outubro de 1700”.
Tinham
se passado mais de trezentos anos desde que o nosso apaixonado e fervoroso
Vargas y Montes encaminhou aquelas bem
traçadas linhas à sua amada. Quem seriam D. Alfonso e D. Maria de Sierra ? Qual
o fim dessa história ? Pesquisadores tentaram identificar o casal de enamorados
, mas mostrou-se impossível o projeto. Na época, não havia registro nenhum de
mulheres e nem participação delas em levantamentos censitários. Dom Vargas y Montes
também não se localizou. Descobriu-se,
apenas, que a atual vivenda onde a relíquia foi descoberta fazia parte de um antigo seminário e
aventou-se a possibilidade de a amada de D. Afonso ser uma religiosa, talvez
enclausurada com o único fito de ser afastada de um pretendente de origem plebeia
ou inadequado aos olhos da família
Sierra.
O
leitor pode até concluir, como Álvaro de Campos, que “Todas as cartas de amor são ridículas” , independentemente da
cronologia de quando se as grafaram. Talvez, no entanto, mais grotescas e
ridículas sejam as forças que se antepõem seguidamente ao exercício natural do
amor em suas mais diversas formas. A paixão de D. Afonso e Doña Maria terminou
corroída pela inexorabilidade do tempo,
como todas as coisas neste mundo, sujeitas à ferrugem e ao cupim das horas. Se os beijos do nosso galante escritor aconteceram apenas pela intersecção
de Papita ou um dia chegaram à esperada
realidade, não se sabe. Apenas temos a certeza que duraram o infinitesimal
momento em que aconteceram. Se o amor carrega consigo essa efemeridade
inevitável, a cartinha de trezentos anos prova, por outro lado, que o
sentimento que tangeu D. Afonso e D. Maria são eternos na sua essência. Hoje ,
com os celulares e os e-mails, já não
possuem a perenidade de registro que Vargas y Montes um dia imprimiu. Mas, no íntimo, mantém aquela cola básica que
se faz a força motriz da humanidade e que um dia redundou na degustação dos
frutos da árvore do bem e do mal e na expulsão dos jardins do éden.
O
que faz a Terra girar sempre continua sendo a a esperança que imantou D. Vargas y Montes : a de que, para amanhã, sendo Deus servido, uma
resposta há de chegar.
J. Flávio Vieira
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