J. Flávio Vieira
A casa , meio enterrada na depressão do terreno da
fazenda, com sua capela em vis à vis e
seu pé de fícus frondoso, acolhendo a calçada alta e os longos
bancos de madeira, carregava um certo ar
de magia e mistério. Tingia os olhos
deslumbrados do menino com tintas de acolhimento e medo. Durante o dia , o
casarão quase nem sequer se delineava ante a imensidão do quintal, as delícias
do pomar, a líquida lâmina da lagoa logo abaixo. À noite, no entanto,
avolumava-se a casa, agora sem concorrência, embebida nas suas majestáticas
sombras , só penetradas , aqui e ali, pelo fraco foco , em pino, dos candeeiros
a querosene. As paredes dir-se-iam
mata-borrões prenhes de passado, de fantasmas, de sonhos , desejos e (des)ilusões alimentados por muitas e muitas
gerações.
Na salinha da frente , que se abria logo após
à porta principal , a grande mesa com seus tamboretes parecia acolher
anfitriões novos e pretéritos. A cozinha ,de um lado, com seu enorme fogão de
lenha, com o teto negro de pucumãs , olhava desconfiada para o sótão, no alto,
que avaro guardava o milho, o arroz e o feijão em palha, da última safra. Do outro lado, a casa se estendia num largo corredor que se abria para vários quartos, como um rio que
desaguasse em seus afluentes. O primeiro, à direita, era o do avô, com uma
pequena cama de casal , um baú de pregaria e uma janelinha que se abria para a
vista privilegiada da calçada frontal ,
do fícus e da capela.Na parede , uma velha espada da Guarda Nacional. O outro era a do tio padre que ali não morava, mas que se guardava com desvelo quase
arqueológico, intocável, esperando as cada vez mais raras visitas. Defronte ,
uma sala enorme, com uma infinidade de armadores , postos frente a frente ,nas duas mais
largas paredes, prontos a suportarem o peso de incontáveis redes. A cozinha e a
sala maior possuíam portas que as ligavam ao vasto quintal da fazenda. Nas
férias , a algazarra dos netos, como uma praga de gafanhotos, tomava
conta daquele vasto universo, para
o desespero dos pássaros, das fruteiras, dos fantasmas, do avô e da avó. A
gurizada vinha da cidade, de casas apertadas, onde as ruas já tinham sido
engolidas pelos carros, sujeitos ao freio de mão dos pais e professores. Na
fazenda eram como graúnas sem as
tariscas da gaiola.
Durante
o dia, os meninos se espalhavam nos vastos horizontes da fazenda: o sítio, a
lagoa, a caça, a pesca. À noite,
aquietavam-se ante o cansaço e o poder hipnotizador das sombras. Talvez, por
isso mesmo, detentores dos mistérios da ressurreição, o Natal nunca lhes
pareceu uma data especial. Carregavam consigo já a magia do renascer . Ademais,
o Papai Noel sempre se mostrara uma
figura urbana e que não gostava das pequenas chaminés impregnadas de fuligem e
pucumãs. Os meninos, por isso mesmo, nunca precisaram daquele velho distante e
preconceituoso, aprenderam a se virar sozinhos, teciam seus próprios brinquedos
: o pião , o triângulo, a peteca, a bola de meia, o carrinho de rolimã . Não
bastasse aquela existência colorida que já era uma dádiva da natureza, se
autopresenteavam.
Naquele
ano, no entanto, aquela regra imutável
foi quebrada. O menino , na inocência dos seus seis anos, acordou, no Natal,
com um presente colocado abaixo da rede em que dormira no grande corredor da
casa de fazenda. Uma garrafinha de uma bebida sofisticada e nobre : um Guaraná
Champanhe. Sobrenadava a garrafa num mar de urina : o menino ainda tinha aquela
mania feia de urinar na cama. Rápido o guri lavou-a com a água do pote e ,com
ajuda do avô, abriu-a. Degustou o refrigerante, em temperatura natural , como
um sommelier que apreciasse um Bordeaux de ótima safra.
Desde aquele dia que o
meninozinho procura o inefável gosto daquele
guaraná nos outros muitos sabores que a vida lhe tem ofertado. Sem sucesso.
Talvez porque as noites tenham pouco a pouco ficado mais longas e os dias mais
curtos; as sombras agora já não flutuam , mas se balançam nas
redes; os Natais vão tomando nuances de sexta-feira santa . E o menino, ao contemplar-se no espelho,
percebe que lhe cresceu, inexplicavelmente, uma grisalha barba como a do Papai
Noel e tem ficado cada vez mais ranzinza e parecido com o avô.
Crato, 19/12/13
Nenhum comentário:
Postar um comentário