J. Flávio Vieira
A família tivera lá seus anos de
glória. O avô chegara a Matozinho tangido pela seca medonha de 1915, temendo
morrer não de fome , que era já um luxo, mas de sede. Empregou-se num pequeno
Armarinho e lá mesmo dormia, num quartinho nos fundos. Pasqualino Caicó carregava um talento inato de vendedor,
tinha boa conversa, artes de sedução e rápido cresceu no comércio, terminando
por montar sua própria lojinha : “A Mão na Roda” . E foi com ela que, pouco a
pouco, solidificou um verdadeiro império
naquelas brenhas. As lojas se diversificaram e multiplicaram ; nos anos 50, Pasqualino inaugurou o primeiro
Posto de Gasolina da vila e , ainda, enveredou pelo ramo dos imóveis, da
pecuária comprando fazendas casas e se tornando uma das maiores fortunas da
região. Havia filiais de “A Mão na Roda” em quase todos os municípios
importantes do estado. Pasqualino carregava consigo inúmeras qualidades : mesmo com todo o império firmando, mantinha-se
simples, de vida regrada e monástica , nunca se mudou de Matozinho e trabalhava
como um mouro. Não se sabia, também, de papel feio dele no comércio, era duro e
sagaz nas negociações, mas trato firmado , palavra empenhada, escrevia-se no mármore:
não era homem de quiriquiqui, nem duas
conversas.
Casara-se
Pasqualino com D. Mimosa, senhora também de origem humilde, econômica, digna e
dinâmica. Os filhos foram se sucedendo, como acidentes de trabalho da única
diversão de pobre naqueles confins do Judas. Vieram ao mundo dezenove, sobreviveram, ao duro corredor polonês das incontáveis moléstias infantis, dez. Os
meninos criaram-se sobre a rigidez sistemática dos pais. Nada de regalias
extremas , nem facilidades em demasia. Vieram ao mundo, no entanto, na fase
mais áurea do casal e já partiram de um outro patamar social. Tinham diante de
si um verdadeiro império , sem terem qualquer idéia do esforço desprendido na
construção, do suor escorrido pelo corpo de Pasqualino e de Mimosa. Como sói
acontecer, com a morte dos pais, o patrimônio viu-se fatiado em dez pedaços,
além , claro, das fatias dos advogados que terminam também herdeiros nessas
querelas. Findo o inventário, a história parece de todo previsível. Rapidamente
o vasto patrimônio arduamente construído
por Pasqualino e Mimosa dissolveu-se como picolé em calçada quente. A mor parte dos filhos fez apenas o caminho
de volta que o pai um dia havia trilhado. Apenas um dos rebentos , Florisvaldo,
pareceu ter herdado as artes de Pasqualino
e permaneceu mais remediado, mantendo ainda parte da riqueza: lojas e fazendas.
Vê-se
, assim, que a família, tivera lá seus dias de glória e mantinha ainda alguma
empáfia, a certeza última : quem havia reinado devia manter lá alguma
majestade, mesmo depois da queda da dinastia
caicoense. E aqui estamos nós, justamente nos dias que se sucederam à
morte da viúva de Florisvaldo : D. Soledônia. Ela havia sido uma das mulheres
mais elegantes do estado e ficara conhecida pelas jóias , pelos colares de
pérolas e pelos diamantes que costumava usar nas festas mais solenes. Os quatro filhos reunidos , todos netos de
Pasqualino, já brigavam ,como urubu em carniça,
pelo resto do espólio que restara dos pais. Havia pouco a dividir: a
casa, uma fazendola e a última loja “Mão na Roda” de Bertioga, últimos bens que
restaram do incrível reino que Pasqualino um dia erguera com mão de ferro. Imaginavam todos os matozenses que a partilha
de bens seria dificílima. Primeiro, mesmo já quase nada mais restando, na
cabeça dos filhos, eles ainda eram riquíssimos como nos velhos tempos do avô.
Depois, a geração atual pouco tinha a ver com a lisura e a honestidade do avô.
Eram quase todos desmantelados como rastro de carroça , principalmente o primogênito : Teodolino. O homem era
velhaco : não pagava a gente viva nem a morta ou reencarnada. Viva de rolos e
de mutretas e havia sido ele um dos maiores responsáveis pela dilapidação do
patrimônio do pai Florisvaldo, metendo-o como sócio numa indústria de granito
que terminou , após um investimento vultoso, dando com os burros na água.
Previa-se, assim, uma briga colossal pela posse da pouca carniça que restara
para tantos abutres como comensais.
Aberta
a reunião, já com a presença de um advogado como mediador, por incrível que
possa parecer, as coisas pareceram caminhar para um bom termo. Teodolino, com
os olhos merejando, voz embargada, visivelmente emocionado, fez uma declaração
absolutamente inusitada :
---
Minha vida se acabou ! Não consigo viver um minuto sem pensar na minha mãezinha
! Assim, abro mão de tudo, meus irmãos ! Quero apenas o cofre velho dela. Quero
guardar como lembrança última : seus
documentos, seus escritos, sua bíblia, suas lembranças mais queridas que sei
ela guardou lá dentro !
Os
manos acharam estranho aquele desprendimento súbito de Teodolino. Mas , vendo-o
derramar-se no pranto, concordaram. Rápido, os outros três irmãos chegaram a um
consenso na divisão : um fica com a loja, outro com a fazenda e o derradeiro
com a casa. O advogado jamais imaginou que ganharia o salário tão facilmente.
Lavrou o documento, todos assinaram e o juiz , aliviado, no mesmo dia, deu
provimento ao embargo. Na manhã seguinte, chamaram um especialista em cofre para
abri-lo, já que não mais existia chave e ninguém lembrava do segredo.
Teodolino fez questão, com ar vencedor, de convidar os irmãos para a abertura
oficial . Já não derramava lágrimas, os olhos brilhavam como holofotes, imantados pela energia mais potente que se
conhece: a ambição. Esperava, com a ânsia de um pirata, ver sair lá de dentro as jóias fabulosas de
Soledônia: anéis de diamantes, colar de pérolas, braceletes de ouro.
O
especialista , usando uma gazua, encostou o ouvido na porta do cofre e,
meticulosamente, rodopiou o botão da
combinação, anotando a sequência correta ( dois para a esquerda, três para
direita, sete para a esquerda). Depois , refez toda a sequência e, por
fim, destravou-o, num clique seco.
Teodolino partiu correndo e de lá retirou o tesouro deixado por Soledônia: um buquê de rosas secas do seu casamento, um
par de chinelas currulepes do velho Pasqualino e o umbigo de Teodolino que
se houvessem enterrado no pé do mourão do curral não teria
dado aquele azar danado a ele.
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