TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O umbigo de Teodolino




J. Flávio Vieira

                                               A família tivera lá seus anos de glória. O avô chegara a Matozinho tangido pela seca medonha de 1915, temendo morrer não de fome , que era já um luxo, mas de sede. Empregou-se num pequeno Armarinho e lá mesmo dormia, num quartinho nos fundos. Pasqualino  Caicó carregava um talento inato de vendedor, tinha boa conversa, artes de sedução e rápido cresceu no comércio, terminando por montar sua própria lojinha : “A Mão na Roda” . E foi com ela que, pouco a pouco, solidificou  um verdadeiro império naquelas brenhas. As lojas se diversificaram e multiplicaram ;  nos anos 50, Pasqualino inaugurou o primeiro Posto de Gasolina da vila e , ainda, enveredou pelo ramo dos imóveis, da pecuária comprando fazendas casas e se tornando uma das maiores fortunas da região. Havia filiais de “A Mão na Roda” em quase todos os municípios importantes do estado. Pasqualino carregava consigo inúmeras qualidades :  mesmo com todo o império firmando, mantinha-se simples, de vida regrada e monástica , nunca se mudou de Matozinho e trabalhava como um mouro. Não se sabia, também, de papel feio dele no comércio, era duro e sagaz nas negociações, mas trato firmado  , palavra empenhada, escrevia-se no mármore: não era homem de quiriquiqui, nem  duas conversas.
                                   Casara-se Pasqualino com D. Mimosa, senhora também de origem humilde, econômica, digna e dinâmica. Os filhos foram se sucedendo, como acidentes de trabalho da única diversão de pobre naqueles confins do Judas. Vieram ao mundo  dezenove, sobreviveram,  ao duro corredor polonês  das incontáveis moléstias infantis, dez. Os meninos  criaram-se sobre a rigidez   sistemática dos pais. Nada de regalias extremas , nem facilidades em demasia. Vieram ao mundo, no entanto, na fase mais áurea do casal e já partiram de um outro patamar social. Tinham diante de si um verdadeiro império , sem terem qualquer idéia do esforço desprendido na construção, do suor escorrido pelo corpo de Pasqualino e de Mimosa. Como sói acontecer, com a morte dos pais, o patrimônio viu-se fatiado em dez pedaços, além , claro, das fatias dos advogados que terminam também herdeiros nessas querelas. Findo o inventário, a história parece de todo previsível. Rapidamente o vasto patrimônio  arduamente construído por Pasqualino e Mimosa dissolveu-se como picolé em calçada quente.  A mor parte dos filhos fez apenas o caminho de volta que o pai um dia havia trilhado. Apenas um dos rebentos , Florisvaldo, pareceu ter herdado as artes de Pasqualino  e permaneceu mais remediado, mantendo ainda parte da riqueza:  lojas e fazendas.
                        Vê-se , assim, que a família, tivera lá seus dias de glória e mantinha ainda alguma empáfia, a certeza última : quem havia reinado devia manter lá alguma majestade, mesmo depois da queda da dinastia  caicoense. E aqui estamos nós, justamente nos dias que se sucederam à morte da viúva de Florisvaldo : D. Soledônia. Ela havia sido uma das mulheres mais elegantes do estado e ficara conhecida pelas jóias , pelos colares de pérolas e pelos diamantes que costumava usar nas festas mais solenes.  Os quatro filhos reunidos , todos netos de Pasqualino, já brigavam ,como urubu em carniça,  pelo resto do espólio que restara dos pais. Havia pouco a dividir: a casa, uma fazendola e a última loja “Mão na Roda” de Bertioga, últimos bens que restaram do incrível reino que Pasqualino um dia erguera com mão de ferro.  Imaginavam todos os matozenses que a partilha de bens seria dificílima. Primeiro, mesmo já quase nada mais restando, na cabeça dos filhos, eles ainda eram riquíssimos como nos velhos tempos do avô. Depois, a geração atual pouco tinha a ver com a lisura e a honestidade do avô. Eram quase todos desmantelados como rastro de carroça , principalmente  o primogênito : Teodolino. O homem era velhaco : não pagava a gente viva nem a morta ou reencarnada. Viva de rolos e de mutretas e havia sido ele um dos maiores responsáveis pela dilapidação do patrimônio do pai Florisvaldo, metendo-o como sócio numa indústria de granito que terminou , após um investimento vultoso, dando com os burros na água. Previa-se, assim, uma briga colossal pela posse da pouca carniça que restara para tantos abutres como comensais.
                        Aberta a reunião, já com a presença de um advogado como mediador, por incrível que possa parecer, as coisas pareceram caminhar para um bom termo. Teodolino, com os olhos merejando, voz embargada, visivelmente emocionado, fez uma declaração absolutamente inusitada :
                        --- Minha vida se acabou ! Não consigo viver um minuto sem pensar na minha mãezinha ! Assim, abro mão de tudo, meus irmãos ! Quero apenas o cofre velho dela. Quero guardar como lembrança última  : seus documentos, seus escritos, sua bíblia, suas lembranças mais queridas que sei ela guardou lá dentro !
                        Os manos acharam estranho aquele desprendimento súbito de Teodolino. Mas , vendo-o derramar-se no pranto, concordaram. Rápido, os outros três irmãos chegaram a um consenso na divisão : um fica com a loja, outro com a fazenda e o derradeiro com a casa. O advogado jamais imaginou que ganharia o salário tão facilmente. Lavrou o documento, todos assinaram e o juiz , aliviado, no mesmo dia, deu provimento ao embargo. Na manhã seguinte, chamaram um especialista em  cofre para  abri-lo, já que não mais existia chave e ninguém lembrava do segredo. Teodolino fez questão, com ar vencedor, de convidar os irmãos para a abertura oficial . Já não derramava lágrimas, os olhos brilhavam como holofotes,  imantados pela energia mais potente que se conhece: a  ambição.  Esperava, com a ânsia de um pirata,  ver sair lá de dentro as jóias fabulosas de Soledônia: anéis de diamantes, colar de pérolas, braceletes de ouro.
                        O especialista , usando uma gazua, encostou o ouvido na porta do cofre e, meticulosamente, rodopiou  o botão da combinação, anotando a sequência correta ( dois para a esquerda, três para direita, sete para a esquerda). Depois , refez toda a sequência e, por fim,  destravou-o, num clique seco. Teodolino partiu correndo e de lá retirou o tesouro deixado por Soledônia:  um buquê de rosas secas do seu casamento, um par de chinelas currulepes do velho Pasqualino e o umbigo de Teodolino que se  houvessem  enterrado no pé do mourão do curral não teria dado aquele azar danado a ele.

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