As Estrias da Estada
Ou de como um bando se abunda na providencial província brasiliana até encher pelo gargalo a contra-pança, mais do que espera a própria esperança, estando um povo a ver literalmente navios, quando nem sardinha tinha
Já bem antes da gerência e do regente hediondamente abandonarem a sua gente, a comida em Portugal já era coisa rara. Mas a coisa piorou e foi muito com a chegada de Junot e seus soldados famintos. O general francês, representante de Napoleão, ainda acampado em Alcântara, despediu a sua primeira proclamação à corajosa Casa de Bragança e ao verdadeiro povo de Portugal, ameaçando fazer a coisa feder mais do que as ruas de Lisboa - que detinha esgotos a céu aberto e que sua gente mui educada costumava jogar à noite fezes e urinas nas ruas que eram estreitas -, caso não encontrasse a boa recepção e os mantimentos que bem mereciam os soldados de Napoleão o grande, como registra o historiador D. A. Barreto em seu manuscrito Memórias dos sucessos acontecidos na cidade de Lisboa, desde vinte e nove de novembro de 1808.
Enquanto isso, o regente D João, já em Salvador, começa a cumprir os acordos infindáveis que havia acertado com a Inglaterra, quando da trama da fuga. Assim ele decretou a abertura dos portos para o comércio dos navios das nações que estivessem em paz com Portugal, com o devido pagamento de pesada tributação. Na realidade isso não foi um feito de um grande estadista, muito menos benevolência de um devotado aos seus colonos, mas sim fruto de uma negociação prévia de fuga, além de uma questão de pura sobrevivência, uma vez que a política de exceção de Portugal para com a colônia determinava o inteiro monopólio comercial da Coroa Real, sendo que aqui só chegavam itens básicos e daqui se tirava tudo o que a colônia podia dar.
O grande beneficiado por essa grande decisão do grande regente “patrício” foi o grande estado inglês, que como única nação “amiga” passou a dominar o comércio marítimo – com tributação menor do que a das próprias mercadorias portuguesas -, retardando o surgimento da indústria no Brasil, despejando por longos e longos anos nas dependências brasílicas, com trocadilho, uma verdadeira enxurrada de mercadorias. Inclusive fornecendo elementos que ajudaram a manter a estrutura do caráter caricatural que sempre acompanhou a família real, quando aqui desembarcaram com grande pompa patins de gelo, bacias de cobre para aquecimento de camas, grossos cobertores de lã, fartos instrumentos para matemáticos e carteiras para guardar dinheiro.
O estabelecimento da máquina estatal portuguesa nas terras brasílicas do Rio de Janeiro também não se livrou do caricatural e da gastança da Casa de Bragança. O jornalista Hipólito da Costa, irônico e famoso crítico da Coroa Real - que de funcionário da corte portuguesa passou a ser perseguido por ela, acusado e preso pela famigerada Inquisição (em nome de Deus) de ser maçom e que depois fugiu e foi para a Inglaterra -, registrou nas páginas do Correio brasiliense a arguta estratégia política real ao criar, tal qual o Almanaque de Lisboa e como se aqui fossem necessários, o Desembargo do Paço, um Conselho da Fazenda e uma Junta do Comércio. Quando eram necessários e não foram criados os departamentos de Conselho de Minas, de Inspeção para a criação de estradas e um instituto para a redação de mapas, além de uma secretaria de Exame de navegação dos rios.
Mas a complacência e cumplicidade do regente para com os seus era tão grande quanto a sua fome, além de distribuir cargos de ministros, secretários, ouvidores e outros balangandãs apropriados à fartura e satisfação daqueles que tiveram a “coragem” de fugir com a corte, D. João ainda criou, - para amenizar os efeitos negativos da Lei da Aposentadoria - a Câmara dos Registros das Mercês e a Corporação de Armas.
Até 1821 os três: o parvo, a Câmara e a Corporação distribuíram 254 títulos de nobreza, fez onze duques, 38 marqueses, 64 condes, 91 viscondes e 31 barões, todos com regalias do erário público, é claro. Além disso ele, o glutão mor, concedeu a nobre existência de 2630 cavaleiros, comendadores e grã-cruzes da Ordem de Cristo, todos pagos para o ócio, que é a maior aptidão da nobreza.
Arrenego dos argumentos infantilóides de que se a corte não viesse para cá não existiria estado brasileiro, além do maniqueísmo imediatista da “interminável lista de benfeitorias da família real”, um túnel no fim da luz para os que sofrem de miopia intelectual, fica a constatação óbvia de que a importância dos feitos se fez pela carência, carência essa mantida até então de acordo com a política predadora do falido império português para com as colônias.
Se antes da colônia virar esconderijo real era proibida aqui a entrada desde livros até utensílios domésticos, como eram proibidas a criação de escolas e até a fabricação de tecidos, ficando restrita apenas a manufatura de tecidos grossos para o trato campestre e de mineração, era óbvio que a família real encontraria uma província mais atrasada do que a metrópole, sendo que a recíproca é verdadeira em se tratando de Portugal e o resto da Europa, como largamente atestam os registros históricos do período. Nesse quadro de insolvência administrativa qualquer domesticação de mosquitos e qualquer medida de organização do coaxar de sapos se tornariam históricas.
Mas se as longínquas terras brasilianas “lucrariam” com a transformação da colônia em metrópole, o custo para tamanha farsa foi altíssimo. Para se ter uma idéia exata do desperdício, da abastança, e da gula das prioridades da máquina governamental da regência só no ano de 1818 consumiram-se diariamente 620 aves no palácio real, o que dá um total de 226300, só para a casa e pança de D. João. O Banco do Brasil, criado para dar suporte ao comércio e à indústria, finalmente liberada, servia praticamente para pagar a despesa real, os tribunais, o exército, as pensões e os soldos.
E a máquina não parava de crescer, como também os impostos e nem a dívida pública e externa. Quando as juntas portuguesas exigiram a volta do D. João VI, em 25 de abril de 1821, a dívida da corte junto à Inglaterra era bem mais do que 50899:856$276 réis. Mas o último ato da peça bufa de D. João VI não seria voltar praticamente prisioneiro das Juntas Provisionais, frutos da Revolução Liberal do Porto, que o próprio D. João ajudou a fomentar com sua fuga e inversão dos papéis entre Portugal e Brasil. A última farsa histriônica do fugitivo foi abandonar o próprio filho no Brasil e depois vender o Brasil para o próprio Brasil. Mas aí já é outra comédia.
Marcos Leonel
- continua sem ser historiador, agora acreditando mais ainda que os títulos mais importantes são os cinco campeonatos brasileiros e o título de Campeão do Mundo, todos do Flamengo, mas há controvérsias, pois a história é cheia de histórias
Ou de como um bando se abunda na providencial província brasiliana até encher pelo gargalo a contra-pança, mais do que espera a própria esperança, estando um povo a ver literalmente navios, quando nem sardinha tinha
Já bem antes da gerência e do regente hediondamente abandonarem a sua gente, a comida em Portugal já era coisa rara. Mas a coisa piorou e foi muito com a chegada de Junot e seus soldados famintos. O general francês, representante de Napoleão, ainda acampado em Alcântara, despediu a sua primeira proclamação à corajosa Casa de Bragança e ao verdadeiro povo de Portugal, ameaçando fazer a coisa feder mais do que as ruas de Lisboa - que detinha esgotos a céu aberto e que sua gente mui educada costumava jogar à noite fezes e urinas nas ruas que eram estreitas -, caso não encontrasse a boa recepção e os mantimentos que bem mereciam os soldados de Napoleão o grande, como registra o historiador D. A. Barreto em seu manuscrito Memórias dos sucessos acontecidos na cidade de Lisboa, desde vinte e nove de novembro de 1808.
Enquanto isso, o regente D João, já em Salvador, começa a cumprir os acordos infindáveis que havia acertado com a Inglaterra, quando da trama da fuga. Assim ele decretou a abertura dos portos para o comércio dos navios das nações que estivessem em paz com Portugal, com o devido pagamento de pesada tributação. Na realidade isso não foi um feito de um grande estadista, muito menos benevolência de um devotado aos seus colonos, mas sim fruto de uma negociação prévia de fuga, além de uma questão de pura sobrevivência, uma vez que a política de exceção de Portugal para com a colônia determinava o inteiro monopólio comercial da Coroa Real, sendo que aqui só chegavam itens básicos e daqui se tirava tudo o que a colônia podia dar.
O grande beneficiado por essa grande decisão do grande regente “patrício” foi o grande estado inglês, que como única nação “amiga” passou a dominar o comércio marítimo – com tributação menor do que a das próprias mercadorias portuguesas -, retardando o surgimento da indústria no Brasil, despejando por longos e longos anos nas dependências brasílicas, com trocadilho, uma verdadeira enxurrada de mercadorias. Inclusive fornecendo elementos que ajudaram a manter a estrutura do caráter caricatural que sempre acompanhou a família real, quando aqui desembarcaram com grande pompa patins de gelo, bacias de cobre para aquecimento de camas, grossos cobertores de lã, fartos instrumentos para matemáticos e carteiras para guardar dinheiro.
O estabelecimento da máquina estatal portuguesa nas terras brasílicas do Rio de Janeiro também não se livrou do caricatural e da gastança da Casa de Bragança. O jornalista Hipólito da Costa, irônico e famoso crítico da Coroa Real - que de funcionário da corte portuguesa passou a ser perseguido por ela, acusado e preso pela famigerada Inquisição (em nome de Deus) de ser maçom e que depois fugiu e foi para a Inglaterra -, registrou nas páginas do Correio brasiliense a arguta estratégia política real ao criar, tal qual o Almanaque de Lisboa e como se aqui fossem necessários, o Desembargo do Paço, um Conselho da Fazenda e uma Junta do Comércio. Quando eram necessários e não foram criados os departamentos de Conselho de Minas, de Inspeção para a criação de estradas e um instituto para a redação de mapas, além de uma secretaria de Exame de navegação dos rios.
Mas a complacência e cumplicidade do regente para com os seus era tão grande quanto a sua fome, além de distribuir cargos de ministros, secretários, ouvidores e outros balangandãs apropriados à fartura e satisfação daqueles que tiveram a “coragem” de fugir com a corte, D. João ainda criou, - para amenizar os efeitos negativos da Lei da Aposentadoria - a Câmara dos Registros das Mercês e a Corporação de Armas.
Até 1821 os três: o parvo, a Câmara e a Corporação distribuíram 254 títulos de nobreza, fez onze duques, 38 marqueses, 64 condes, 91 viscondes e 31 barões, todos com regalias do erário público, é claro. Além disso ele, o glutão mor, concedeu a nobre existência de 2630 cavaleiros, comendadores e grã-cruzes da Ordem de Cristo, todos pagos para o ócio, que é a maior aptidão da nobreza.
Arrenego dos argumentos infantilóides de que se a corte não viesse para cá não existiria estado brasileiro, além do maniqueísmo imediatista da “interminável lista de benfeitorias da família real”, um túnel no fim da luz para os que sofrem de miopia intelectual, fica a constatação óbvia de que a importância dos feitos se fez pela carência, carência essa mantida até então de acordo com a política predadora do falido império português para com as colônias.
Se antes da colônia virar esconderijo real era proibida aqui a entrada desde livros até utensílios domésticos, como eram proibidas a criação de escolas e até a fabricação de tecidos, ficando restrita apenas a manufatura de tecidos grossos para o trato campestre e de mineração, era óbvio que a família real encontraria uma província mais atrasada do que a metrópole, sendo que a recíproca é verdadeira em se tratando de Portugal e o resto da Europa, como largamente atestam os registros históricos do período. Nesse quadro de insolvência administrativa qualquer domesticação de mosquitos e qualquer medida de organização do coaxar de sapos se tornariam históricas.
Mas se as longínquas terras brasilianas “lucrariam” com a transformação da colônia em metrópole, o custo para tamanha farsa foi altíssimo. Para se ter uma idéia exata do desperdício, da abastança, e da gula das prioridades da máquina governamental da regência só no ano de 1818 consumiram-se diariamente 620 aves no palácio real, o que dá um total de 226300, só para a casa e pança de D. João. O Banco do Brasil, criado para dar suporte ao comércio e à indústria, finalmente liberada, servia praticamente para pagar a despesa real, os tribunais, o exército, as pensões e os soldos.
E a máquina não parava de crescer, como também os impostos e nem a dívida pública e externa. Quando as juntas portuguesas exigiram a volta do D. João VI, em 25 de abril de 1821, a dívida da corte junto à Inglaterra era bem mais do que 50899:856$276 réis. Mas o último ato da peça bufa de D. João VI não seria voltar praticamente prisioneiro das Juntas Provisionais, frutos da Revolução Liberal do Porto, que o próprio D. João ajudou a fomentar com sua fuga e inversão dos papéis entre Portugal e Brasil. A última farsa histriônica do fugitivo foi abandonar o próprio filho no Brasil e depois vender o Brasil para o próprio Brasil. Mas aí já é outra comédia.
Marcos Leonel
- continua sem ser historiador, agora acreditando mais ainda que os títulos mais importantes são os cinco campeonatos brasileiros e o título de Campeão do Mundo, todos do Flamengo, mas há controvérsias, pois a história é cheia de histórias
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