TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 16 de abril de 2015

O giro dos tufões


Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
......................................................
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.

Antero de Quental, in "Sonetos"


                                                               A equação  parece simples e nem necessitaria da ajuda  da matemática. Imaginem uma garota  bonita, meiga, doce, filha de um médico renomado, nascida na capital, com todas os desejos de uma criança totalmente ao alcance das mãos. Os mais simples anseios adolescentes ali estavam perfeitamente atingíveis. O caminho mais previsível seria relegar os estudos a um segundo plano, meter-se em festas , ter a praia como uma extensão da sua casa e tomar o shopping center como seu templo  maior, onde passaria a fazer oferendas diárias ao mais sagrado deus da modernidade : o consumo. Depois, certamente, apareceria o casamento perfeito  e nem haveria a necessidade de se preocupar com o futuro. Viriam alguns filhos que seriam criados afetuosamente pelas babás, pagas regiamente, e a vida se resumiria a viagens, passeios e deleites. Os frutos da existência estavam ali pendentes em galhos baixos, prontos para a colheita diária.
                                               Este talvez seria o caminho trilhado por incontáveis dondocas dos dias atuais. A felicidade vista ali na prateleira da loja de departamentos pronta para ser adquirida , dia a dia, nas mais variadas sessões. O cartão de crédito seria o ingresso de cortesia para o Shangri-lá. Pois bem, pensem, agora, num anjo que , simplesmente, resolve nadar contra a corrente e escolhe trilhar, biblicamente, o caminho estreito ao invés da highway.  
                                               Ela se chamava Marinila e fez-se aluna dedicada, enveredou pela Medicina e formou-se com aquela chama hipocrática de tratar e curar os mais necessitados. Poderia escolher uma especialidade rentável, destas que enchem os olhos dos recém-formados da atualidade  tão afeitos às cabines duplas. Eles babam de satisfação e descobrem, rapidamente, sua vocação,  no sonho certo do pote de ouro ao pé do arco-íris. Ao invés disso, ela buscou o patinho feio da sua profissão : A Medicina Social. Poderia, mais uma vez, ter se dedicado única e exclusivamente ao bem-estar da sua própria família. Carregava consigo, no entanto,  a vontade de mudar o destino terrível de uma outra família que houve por bem adotar : a de milhões de desafortunados que migalhavam no país , diuturnamente, por uma consulta, um exame complementar, um medicamento. Profundamente religiosa – uma faceta que herdou indelevelmente da família—descobriu cedo que a doença estava intrinsecamente ligada à política e que , como diria Foucault, para ser sadio o homem necessitaria primeiramente ser liberto.
                                   Num crítico momento porque passava o Brasil, meteu-se na luta desigual que redundou na Constituição de 1988 e nos alicerces do Sistema Único de Saúde. Envolveu-se, logo a seguir, nas gestões municipais do SUS, no interior do Ceará, naqueles terríveis instantes da implementação do novo Sistema, nadando contra as fortes correntezas contrárias da Medicina Privada. Como Secretária de Saúde, deixou um legado inesquecível de trabalho árduo, técnica afiada, administração sóbria e solidária,  e honradez absoluta e irretocável. O Cariri viu, diante de si, a mais completa , justa e bem intencionada Secretária de Saúde de toda sua história. Depois, ascendeu à vida acadêmica, como professora e Coordenadora da Faculdade Federal de Medicina do Cariri, após cumprir, com galhardia, Mestrado e Doutorado na Itália. Os alunos liam facilmente nos seus olhos que a Medicina não era um ofício mas uma Arte,  que o médico trabalhava num templo e não em uma oficina.
                                   A batalha maior da sua vida, no entanto, estava ainda por vir. No auge das vidas profissional e pessoal,  eis que o destino lhe põe face a face com o inimigo contra o qual batalhara durante todos seus dias : a Moléstia. Enfrentou-a com  força hercúlea, instante a instante, minuto a minuto. Manteve-se impávida ante o sofrimento e a dor, fazendo tremular, até o fim, a verde bandeira da esperança. Nestas esquinas tortuosas da vida é que se percebe, claramente,  a religiosidade de superfície.  Do seu corpo já frágil, porém, brotava uma luz incandescente, reflexo da profunda espiritualidade que imantou toda sua existência. Ante o desespero dos amigos mais próximos, pedia que orassem simplesmente para que se fizesse a vontade de Deus e não para que Ele viesse a mudar os seus desígnios.
                                   Estas palavras saem apenas agora depois de quase um ano do voo último do nosso pássaro. É que para todos nós,  Marinila se mostra ainda tão vívida , parece que encontraremos aquele sorriso  aberto e largo na quebra da próxima esquina. E a  ausência se faz insidiosamente, como um caruncho que nos vai , lentamente, roendo as fibras da nossa alma.  A saudade, no entanto, esmaece um pouco quando vemos diante de nós um outro irmão que sofre, uma injustiça que precisa de luta para ser corrigida,  uma caridade que necessita transformar-se, urgentemente, em justiça social.  Marinila, como por encanto, chega então com o seu sorriso e sua meiguice de outrora, junta-se a nós no Amor sagrado, na comunhão universal do eterno Bem.

Crato, 16/04/15     

                                         

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